sábado, 30 de abril de 2016

União de Contrários ou A Vitória da Poesia Japonesa

União de Contrários
ou
A Vitória da Poesia Japonesa
Carlos Drummond de Andrade




No velho número de um jornal pacifista francês, encontrado por acaso, vem a história do casamento do general Von Falkenhausen com a ilustre desconhecida Cécile Vent. Dá-se que esse típico oficial prussiano foi gauleiter1 da Bélgica durante a ocupação nazista, assim como um seu parente mais velho exercera o governo militar do mesmo país, na Primeira Guerra Mundial. A essa família de militares alemães coube, pois, o privilégio de fornecer dois algozes ao povo belga, no espaço de 25 anos. Se o primeiro foi mais cruel do que o segundo, também este não se revelou bonequinho de açúcar-cande, pois, terminada a guerra, os belgas reclamaram o direito de julgá-lo, e o condenaram a doze anos de prisão.

Em 1947, estava o general em sua cela, posto em triste sossego; o tempo escorria mole, ou nem isso; depois da longa vibração de uma vida que conhecera a guerra nos Dardanelos2 e na China, a pasmaceira, o tédio, o voo de um mosquito observado como um acontecimento. Não, o general não era homem para viver sem ordenar o fuzilamento de ninguém e finava-se de desgosto. O diretor da penitenciária alarmou-se; não queria cadáveres no estabelecimento. Chamou a representante do serviço de assistência às prisões e pediu-lhe que socorresse o pobre. Ela fincou o pé: não e não. Era uma antiga “resistente”, lembrava-se bem das torturas infligidas pelos invasores a seus compatriotas; ela própria conhecera a prisão.

A consciência profissional, entretanto, venceu-a. Cécile foi visitar o general, impressionou-se com sua seriedade e cortesia; verificou que ambos amavam a poesia japonesa, essa poesia alusiva e discreta por excelência; e falaram e falaram de rebus pluribus3. Ele pediu-lhe que voltasse; ela atendeu. Finalmente, ele foi libertado; ela o esperava numa cidade do Palatinado4 onde se casaram, tantos anos depois de se terem conhecido: Von Falkenhausen, aos 82; Cécile, aos 54.

O povo torceu o nariz a esse matrimônio do céu e do inferno, protestando: uma belga que se dá ao respeito, mormente se tem uma ficha heroica, não pode desposar um general alemão. É a vítima abraçada ao verdugo, a ovelha ao lobo, Cristo a Satanás, e outras comparações deste gênero, que o sentimento patriótico irritado inspira à alma popular e até à gente mais esclarecida. O fato é que os dois estão casados e bem unidos. O general (que se envolvera no golpe frustrado contra Hitler) não era a onça que Cécile e seus patrícios imaginavam, ou tinha deixado de sê-lo, por artes do tempo e de Cécile; até na casamata5 psíquica de um general alemão pode medrar a florzinha do sentimento humano.

O jornal caçoa um pouco desse par de velhos namorados, mas admite na decisão de Cécile uma nobreza que faltou ao cientista alemão Von Braun, inventor das bombas V-1 e V-2, lançadas contra Londres, e que passou a construir mísseis para os americanos; ou ainda aos espiões americanos William Martin e Bernon Mitchell, que atravessaram a Cortina de Ferro e passaram a servir à URSS. Com seu idílio crepuscular, ela superou divisões políticas e rancores nacionais, para além das condições históricas. O próprio general tem seu mérito: ao casar-se com uma belga resistente, de certo modo limpou-se de antigas faltas. Pequena vitória da humanidade sobre a barbárie, diz o comentarista. E vitória um pouco também – acrescento – da poesia japonesa.

Notas:

1. Chefe de um distrito na Alemanha nacional-socialista e nos territórios ocupados pelo Reich.

2. Estreito no noroeste da Turquia ligando o mar Egeu ao mar de Mármara.

3. Expressão latina que significa “muitas coisas”.

4. A Renânia-Palatinado é um dos 16 estados da Alemanha, situado no sudoeste do país. A capital é Mainz. 

5. Abrigo subterrâneo à prova de bombardeios, dentro de um forte, para alojar tropas e estocar munição.





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