domingo, 19 de janeiro de 2020

A Redenção pela Arte Culinária


A Redenção pela Arte Culinária
Alan Watts
Só a Arte Culinária nos redime do ônus de ter de viver à custa de outras vidas



O
 corpo biológico não é uma coisa fixa, mas um processo em curso, tal como uma chama ou um redemoinho: só a forma é estável, pois a substância é um fluxo de energia que entra por uma extremidade e sai por outra. Somos oscilações temporariamente identificáveis em meio a uma corrente energética que entra em nós sob a forma de luz, calor, ar, água, leite, pão, fruta, cerveja, estrogonofe, caviar ou patê de foie gras. E sai de nós sob a forma de gases e excrementos – mas também como sêmen, bebês, confabulações, política, comércio, guerra, poesia ou música. Ou filosofia.    

Um filósofo, título que suponho merecer, é uma espécie de intelectual simplório que se assombra com aquilo que a gente mais sensata considera normal; é alguém que não pode deixar de maravilhar-se com os fatos mais banais da vida cotidiana. Como afirma Aristóteles, o espanto é o estopim da filosofia. A mim me encanta saber que vivo sobre uma grande esfera rochosa que gira em torno de uma imensa bola de fogo. Encanta-me ainda mais o fato de que sou, eu próprio, um labirinto, um complicado arabesco de tubos, filamentos, células, fibras e membranas que constituem espécies distintas de pulsações imersas na pulsação maior: aquela incessante corrente de energia. No entanto, o que realmente me perturba é que quase todas as substâncias que compõem o labirinto, com exceção da água, eram outrora corpos cheios de vida – corpos de animais e plantas. E que, por falta de escolha, delas tive de me apropriar mediante o assassinato. Não somos senão o rearranjo de outras criaturas, pois a existência biológica só se perpetua graças ao mútuo sacrifício e à mútua digestão das diversas espécies. Só existo como membro deste grupo de seres que florescem devorando-se uns aos outros.

É óbvio que ser devorado é algo muito doloroso, e não desejo tal sina para mim mesmo. Fico horrorizado só de imaginar a cena. Se os donos de crematórios não me pegarem primeiro, o fato de tornar-me um dia banquete de micróbios e vermes compensará suficientemente as vacas, os cordeiros, as aves e os peixes de que me fartei ao longo de minha vida? E eu me pergunto: não será esse gigantesco esquema biológico de mutilação recíproca uma engenhoca insana e diabólica que conduz aceleradamente a um beco sem saída? Tenho visto plantas atacadas pela mosca verde; se num dia se mostram apinhadas de pequeninos corpos gordos e suculentos, no próximo não são mais que pó cinza sobre hastes secas. A vida parece um sistema que se devora até a morte, e no qual a vitória equivale à derrota.

Pode o homem seguir facilmente o exemplo da mosca verde. Quando se torna um especialista em tecnologia, revela-se mais predatório que a piranha e o gafanhoto. Ele devasta, destrói e contamina toda a superfície do planeta: minerais, florestas, pássaros, peixes, insetos, água fresca – tudo é convertido em subúrbios e esgotos, ferrugem e poluição. Seu domínio completo sobre os inimigos naturais, desde o tigre até a bactéria, permitiu que proliferasse descontroladamente sobre o globo; e temendo a própria ganância, desperdiça montanhas de dinheiro na fabricação de armas cada vez mais mortíferas. Muitos animais pré-históricos extinguiram-se em decorrência do excessivo desenvolvimento de suas defesas naturais. Desapareceram, por exemplo, o tigre de dentes de sabre e o titanotério; o primeiro por causa da dificuldade em manejar suas imensas presas, e o segundo por causa do peso insuportável de seus chifres.

Alguém pode aceitar a ideia da morte da espécie, tal como aceita a da morte do indivíduo. A energia do universo adotará novos padrões e formas, e o universo dançará ritmos até então desconhecidos. O espetáculo, é claro, continuará; mas por que deve ele encerrar tão intensa agonia? Nervos e carnes sensíveis se contorcendo ao bater implacável de dentes afiados – será essa a condição indispensável à continuidade da vida? Se for, então o único problema filosoficamente sério, como afirmava Camus, é se devemos ou não cometer suicídio.

Consequentemente, o filósofo se pergunta: afora o suicídio, existe outra maneira de escapar deste círculo vicioso de matança recíproca, o qual não deixa de ser uma espécie de suicídio cósmico? Existe algum modo de evitar, mitigar ou abrandar esse sistema de assassinato e agonia implícito até mesmo na existência do mais espiritualizado dos seres humanos?  

O vegetarianismo não constitui uma solução. Há tempos o botânico indiano Jagadis Bose conseguiu medir as reações de dor das plantas ao serem arrancadas ou cortadas. Pode-se alegar que as plantas não sabem que sofrem; mas o mais razoável é reconhecer que elas não são capazes de expressar de maneira convincente, pelo menos para nós, a dor que padecem. Quando referi a pesquisa de Bose ao budista estritamente vegetariano Reginald H. Blyth, autor do clássico Zen in English Literature, ele respondeu: “Sim, eu sei. Mas os vegetais, quando os matamos, gritam muito baixo.” Em outras palavras, Blyth se mostrou condescendente com os próprios sentimentos. Monges hinduístas e budistas incorporam ao seu dia a dia a atitude de ahimsa ou não violência, ao extremo de não levantarem a vista do solo enquanto caminham – não, como poderíamos supor, para evitar a tentação provocada por uma esplendorosa passante; mas para evitar a morte por esmagamento de besouros, caracóis ou minhocas que por ventura encontrarem durante o percurso. No entanto, tal atitude não deixa de ser um subterfúgio, um gesto ritual de reverência pela vida que não altera em nada o fato de que vivemos graças ao morticínio.

Recorrendo à minha própria consciência para lançar alguma luz sobre tão espinhosa questão, encontrei três respostas.

A primeira consiste em admitir que a decisão de viver supõe a decisão de matar. E se estou realmente decidido a matar, é preciso fazê-lo de maneira eficiente. Que se considere a agonia de ser decapitado por um verdugo desastrado. A morte deve ser tão rápida quanto possível, e a mão que segura o rifle ou maneja o facão deve manter-se firme.

A segunda é levar em conta que toda forma de vida tornada alimento deve ser tratada conforme o princípio “Amo tanto esta manifestação da vida que vou comê-la”, o que significaria também “Como tanto esta manifestação da vida que vou amá-la.” Tal princípio tem sido negligenciado impiedosamente pela agroindústria e pela indústria pesqueira atuais. Para citar apenas dois exemplos, as modernas técnicas de pesca à baleia estão ameaçando a espécie de extinção, e a criação industrial de aves está saturando o mercado com pseudofrangos e pseudo-ovos. Criados em jaulas metálicas e alimentados com ração química, os desafortunados animais nunca ciscam a terra nem tomam sol; daí apresentarem a carne insípida. Tudo o que não gera prazer no prato não foi bem tratado nem na cozinha nem na granja.

A terceira foi genialmente apresentada por Lin Yutang da seguinte forma: “A galinha sacrificada e não devidamente preparada ao fogão morreu em vão.” O mínimo que eu posso fazer por uma criatura que morreu em meu benefício, é honrá-la – não com um ritual vazio de significado, mas cozinhando-a com perfeição e saboreando-a plenamente.

O amor às plantas e aos animais que tornam possível nossa vida deve manifestar-se sobretudo na cozinha.