No
velho número de um jornal pacifista francês, encontrado por acaso, vem a
história do casamento do general Von Falkenhausen com a ilustre desconhecida
Cécile Vent. Dá-se que esse típico oficial prussiano foi gauleiter1 da Bélgica durante a ocupação nazista, assim
como um seu parente mais velho exercera o governo militar do mesmo país, na
Primeira Guerra Mundial. A essa família de militares alemães coube, pois, o
privilégio de fornecer dois algozes ao povo belga, no espaço de 25 anos. Se o
primeiro foi mais cruel do que o segundo, também este não se revelou bonequinho
de açúcar-cande, pois, terminada a guerra, os belgas reclamaram o direito de
julgá-lo, e o condenaram a doze anos de prisão.
Em 1947, estava o general em sua cela, posto em triste
sossego; o tempo escorria mole, ou nem isso; depois da longa vibração de uma
vida que conhecera a guerra nos Dardanelos2 e na China, a pasmaceira,
o tédio, o voo de um mosquito observado como um acontecimento. Não, o general
não era homem para viver sem ordenar o fuzilamento de ninguém e finava-se de
desgosto. O diretor da penitenciária alarmou-se; não queria cadáveres no
estabelecimento. Chamou a representante do serviço de assistência às prisões e
pediu-lhe que socorresse o pobre. Ela fincou o pé: não e não. Era uma antiga
“resistente”, lembrava-se bem das torturas infligidas pelos invasores a seus
compatriotas; ela própria conhecera a prisão.
A consciência profissional, entretanto, venceu-a. Cécile
foi visitar o general, impressionou-se com sua seriedade e cortesia; verificou
que ambos amavam a poesia japonesa, essa poesia alusiva e discreta por
excelência; e falaram e falaram de rebus
pluribus3. Ele pediu-lhe que voltasse; ela atendeu. Finalmente,
ele foi libertado; ela o esperava numa cidade do Palatinado4 onde se
casaram, tantos anos depois de se terem conhecido: Von Falkenhausen, aos 82;
Cécile, aos 54.
O povo torceu o nariz a esse matrimônio do céu e do
inferno, protestando: uma belga que se dá ao respeito, mormente se tem uma
ficha heroica, não pode desposar um general alemão. É a vítima abraçada ao
verdugo, a ovelha ao lobo, Cristo a Satanás, e outras comparações deste gênero,
que o sentimento patriótico irritado inspira à alma popular e até à gente mais
esclarecida. O fato é que os dois estão casados e bem unidos. O general (que se
envolvera no golpe frustrado contra Hitler) não era a onça que Cécile e seus
patrícios imaginavam, ou tinha deixado de sê-lo, por artes do tempo e de
Cécile; até na casamata5 psíquica de um general alemão pode medrar a
florzinha do sentimento humano.
O jornal caçoa um pouco desse par de velhos namorados,
mas admite na decisão de Cécile uma nobreza que faltou ao cientista alemão Von
Braun, inventor das bombas V-1 e V-2, lançadas contra Londres, e que passou a
construir mísseis para os americanos; ou ainda aos espiões americanos William
Martin e Bernon Mitchell, que atravessaram a Cortina de Ferro e passaram a servir
à URSS. Com seu idílio crepuscular, ela superou divisões políticas e rancores
nacionais, para além das condições históricas. O próprio general tem seu
mérito: ao casar-se com uma belga resistente, de certo modo limpou-se de
antigas faltas. Pequena vitória da humanidade sobre a barbárie, diz o
comentarista. E vitória um pouco também – acrescento – da poesia japonesa.
Notas:
1. Chefe de um distrito na Alemanha nacional-socialista e nos territórios ocupados pelo Reich.
2. Estreito no noroeste da Turquia ligando o mar Egeu ao mar de
Mármara.
3. Expressão latina que significa “muitas
coisas”.
4. A Renânia-Palatinado é um dos 16 estados da
Alemanha, situado no sudoeste do país. A capital é Mainz.
5. Abrigo subterrâneo à prova de
bombardeios, dentro de um forte, para alojar tropas e estocar munição.
L
ResponderExcluirinda!!!