domingo, 30 de setembro de 2018

Sagen Ishizuka: A Potência Transformadora do Alimento (Parte Primeira)


Sagen Ishizuka:
A Potência Transformadora do Alimento
(Parte Primeira)
                                                                                                                                     Ronald E. Kotzsch




É George Ohsawa conhecido geralmente como o fundador da macrobiótica. Embora tenha transmitido ao movimento sua marca pessoal, não foi ele, porém, seu criador. O próprio Ohsawa cita, com frequência, o médico japonês Sagen Ishizuka como inspirador e mestre. Ishizuka, com efeito, iniciou o movimento que mais tarde se chamaria “macrobiótica”. Seus ensinamentos constituem o alicerce sobre o qual Ohsawa e outros mais ergueram a própria obra.

Nascido em 1850, no ocaso do Período Edo (1600-1868), Sagen Ishizuka viveu a fase adulta durante as primeiras décadas do Japão moderno. Nessa época, passou o Japão por céleres e radicais mudanças, substituindo vários elementos de sua cultura tradicional por empréstimos do Ocidente. Ishizuka, percebendo que no campo da alimentação e medicina muitos dos conhecimentos antigos estavam sendo perdidos, resgatou-os e apresentou-os com roupagem moderna e científica.

Do século XVII à primeira metade do século XIX, o Japão isolou-se progressivamente do resto do mundo. A ninguém era permitido sair do país ou a ele retornar, caso houvesse conseguido deixá-lo. Estrangeiros que porventura se encontrassem em solo nipônico corriam risco de vida; e mesmo náufragos na costa do país não eram tolerados. Somente um punhado de comerciantes holandeses exercia sem maiores problemas suas atividades econômicas numa minúscula ilha no porto de Nagasaki.

Para a maioria da população, o sonho de estabilidade e paz internas se havia concretizado. Um forte governo central sob o comando de um líder militar, o shōgun, mantinha o controle quase absoluto de um sistema feudal complexo. A população dividia-se em quatro classes sociais fixas: samurais, agricultores, artesãos e comerciantes – cada qual com seus direitos e deveres específicos. Distúrbios políticos ou sociais, se havia, não alcançavam o menor significado. A economia crescia, embora muito lentamente e dentro dos limites de uma sociedade agrícola e feudal. Vários centros urbanos, incluindo Edo (hoje Tóquio) e Osaka, desenvolveram-se, e neles uma rica cultura artística emergiu. Literatura, pintura, teatro e artesanato atingiram níveis de excelência. A cultura como um todo caracterizava-se por um refinamento estético talvez nunca alcançado na história da humanidade. Da perspectiva do século XXI, o Japão do Período Edo ou Tokugawa se assemelha a um exótico paraíso adornado de âmbar.

Em pleno século XIX era o Japão, portanto, comparado ao Ocidente, um país ainda medieval, intocado pela Revolução Industrial e Científica. A alimentação e a medicina refletiam esse ambiente. A dieta havia mudado muito pouco durante os séculos. O arroz representava a matéria-prima mais importante. Desempenhava ele um papel tão central na vida da nação, que constituía a base do intercâmbio econômico. A riqueza do senhor feudal era mensurada pela quantidade de arroz produzido anualmente por suas terras. Considerava-se o arroz uma dádiva concedida aos ancestrais sobre-humanos da nação diretamente pela deusa do sol. Um provérbio muito comum à época ensinava: “O arroz é Buda.” Enquanto o grão parcialmente polido alimentava os ricos, o grão integral saciava o comum dos homens. Os pobres misturavam o arroz a outros cereais, como cevada e trigo, ou reservavam-no para as férias ou emergências. Um ditado muito popular entre os camponeses – “Chegou mesmo a dar-lhe arroz” – indicava que a doença que atingira um pobre coitado era tão grave, que o autorizava a alimentar-se de arroz. Dizia-se go-han, “honorável arroz”, para referir-se a toda espécie de refeição.

Outro produto muito apreciado era a soja, usada sob a forma de pasta fermentada (misso), molho fermentado (shoyu) e coágulo (tofu). Ingeria-se uma grande variedade de vegetais, e com o nabo comprido japonês (daikon) e a película de arroz (nuka) elaborava-se uma deliciosa conserva chamada takuan. Peixes e vegetais do mar eram também muito utilizados. Frutas, porém, não constavam como parte importante da dieta, sendo a tangerina e o caqui as únicas regularmente cultivadas.

Pouca carne era consumida, dados os preceitos religiosos que a proibiam tanto por parte do Xintoísmo autóctone quanto do Budismo importado por volta do ano 400 d.C. Frango e aves selvagens representavam a maior parte do que se consumia em termos de carne. A criação de animais de grande porte para abate era virtualmente desconhecida. O gado criado destinava-se basicamente à tração animal, pois a ideia de beber leite ou usá-lo para produzir manteiga ou queijo era quase inconcebível. Em 1859, quando o embaixador americano Townsend Harris reclamou uma vaca para beber-lhe o leite, o diplomata japonês escandalizou-se. Ainda no período moderno, comportamentos semelhantes persistiam em determinados rincões do país. Em sua autobiografia intitulada “A Filha do Samurai”, Etsuko Sugimoto narra a própria infância no interior do Japão não muito depois da chegada de Harris. Acreditava-se que o consumo de leite e seus derivados converteria o homem em quadrúpede. Além disso, o uso da carne bovina incluía-se entre os atos abomináveis. Quando o avô de Etsuko, por razões médicas, se viu obrigado a ingerir carne, as portas do santuário da família foram fechadas a fim de que os espíritos dos ancestrais não se sentissem insultados.

A medicina tradicional baseava-se em ideias e práticas que remontavam à aurora da civilização chinesa. Segundo essa tradição, a fisiologia e a saúde humanas devem ser entendidas a partir da noção de Ki (Ch’i, em chinês), a energia vital que permeia todo o universo e transmite vida ao corpo. O ki flui ao longo do corpo por canais conhecidos como meridianos. Há dois meridianos principais, um na região frontal e outro na região dorsal do corpo, além de seis nos braços e seis nas pernas. Cada um desses doze meridianos se conecta a um órgão ou função do corpo, e o desequilíbrio em um órgão manifesta-se como deficiência, estagnação ou excesso de Ki no meridiano que lhe é correspondente. Era por meio do reequilíbrio, estimulando ou sedando os canais energéticos, que as várias artes médicas tratavam as doenças. A acupuntura lançava mão de agulhas de ouro ou prata inseridas em pontos estratégicos ao longo dos meridianos com o propósito de regular o Ki. A moxabustão buscava estimular esses pontos queimando sobre os mesmos pequenas quantidades da erva artemísia. No shiatsu, a estimulação e o reequilíbrio realizavam-se por intermédio da pressão digital. Ervas também eram usadas, agindo internamente sobre os órgãos. O objetivo dessas diferentes técnicas era o mesmo: estabelecer um livre e harmonioso fluxo de Ki através de todo o organismo, a fim de que o “Ki primordial”, genki (termo sino-japonês para “saúde”) fosse reconquistado.

Outro braço dessa tradição médica era a regulação pela dieta. Embora a maioria dos curadores a usassem como medida suplementar a suas técnicas de resultado mais imediato, algum deles a consideravam o tratamento por excelência. No filme “O Barba Ruiva” (Akahige), o diretor Akira Kurosawa se detém sobre a carreira de um médico do Período Tokugawa. Ainda que devotado principalmente aos cuidados dos pobres, Barba Ruiva responde ao chamado de um rico senhor feudal. O nobre– balofo e inchado– mal consegue manter-se de pé. O médico encara-o friamente, cobra-lhe uma quantia exorbitante (para manter sua clínica) e aconselha-o a não comer senão papa de arroz integral por um período indefinido. A expressão de incredulidade na face gorducha do homem comprova que a dietoterapia era um elemento secundário, e não principal, na medicina do Japão pré-moderno.