domingo, 30 de dezembro de 2018

Tornar-se humilde e puro


“É preciso esquentar o ferro várias vezes e martelá-lo muito tempo, antes que ele possa tornar-se aço temperado. E só então é possível dar-lhe a forma que se deseja e dele fazer uma espada cortante. Da mesma forma, um homem deve passar várias vezes pela fornalha das tribulações, deve ser batido pelas perseguições do mundo antes de tornar-se humilde, puro e capaz de ascender à presença de Deus”.

Ramakrishna

sábado, 8 de dezembro de 2018

Sagen Ishizuka: A Potência Transformadora do Alimento (Parte Terceira)



Sagen Ishizuka:

A Potência Transformadora do Alimento
(Parte Terceira)
                                                                                                                                  Ronald E. Kotzschmeuip.co


Sagen Ishizuka nasceu justamente às vésperas de entrar o Japão nesse período de reviravoltas. Sua família, pertencente à classe samurai, habitava uma remota região defronte ao mar do Japão. Sua educação formal foi concluída quando contava ele 18 anos. Mas Ishizuka não abandonou os estudos: neles prosseguiu por conta própria, sendo particularmente atraído por línguas estrangeiras e ciência ocidental. De acordo com a biografia escrita por Ohsawa, Ishizuka dominava o francês, o alemão, o holandês e o inglês, o que lhe permitiu aprofundar-se nos estudos científicos. Ele copiou à mão todo um volume sobre astronomia publicado em holandês.

Predestinado à medicina, Ishizuka trabalhou num hospital em Fukui, sua terra natal, onde entrou em contato como os métodos terapêuticos tradicionais. Exatamente quando a medicina ocidental começou a introduzir-se no país, transferiu-se ele para Tóquio, trabalhando e estudando num hospital da região. Com o tempo, graças a continuados estudos de ciência e medicina ocidental, obteve o título de doutor. Aos 28 anos tornou-se médico do exército japonês.

Desde a infância Ishizuka sofria de enfermidade renal crônica, a qual se manifestava como inflamação cutânea grave. No início de sua carreira militar, a doença intensificou-se e ameaçou incapacitá-lo para a vida profissional. Como não conseguia alívio com a medicina que ele próprio praticava, a medicina alopática, voltou-se então para a tradição oriental. O Tratado de Medicina Interna do Imperador Amarelo impressionou-o bastante. O livro estimulou-o a seguir uma linha de estudos e tratamentos totalmente conflitantes com as novidades da época.

Escrito provavelmente no ano 500 a.C., o Tratado de Medicina Interna do Imperador Amarelo consiste numa compilação da sabedoria médica da antiga China. Trata-se de um manual sobre anatomia humana, tipos e causas de doenças, métodos de diagnose e espécies de tratamentos. Sua exposição baseia-se na Teoria dos Cinco Elementos ou Energias, segundo a qual há cinco transformações da energia vital ou Ch’i. Os Cinco Elementos ou Energias correspondem à Terra, Água, Madeira , Metal e Fogo. Órgãos, doenças, sintomas e tratamentos (na verdade, todos os fenômenos) podem ser classificados de acordo com essas cinco “fases”, todas dinamicamente relacionadas entre si. A maior parte da obra trata da clínica e da técnica, embora se ocupe também dos princípios básicos da saúde e doenças humanas.

O Tratado, por exemplo, ensina que há uma relação fundamental entre alimento, saúde e doença. De acordo com a Teoria das Cinco Energias, há cinco sabores – doce, ácido, amargo, salgado e picante –, e cada um deles está em correspondência com determinado órgão do corpo humano. Ingerir exageradamente um alimento de certo sabor enfraquecerá o órgão ou função que lhe é correspondente. A alimentação, portanto, pode ser a principal causa das doenças.

O livro também afirma que o alimento constitui o meio fundamental para tratar as enfermidades. No texto pode-se ler que na “época medieval” os sábios tratavam as doenças primeiramente pela dieta, em geral prescrevendo um regime de papa de arroz por dez dias. Caso este tratamento não eliminasse o problema, recorria-se a raízes e plantas medicinais para harmonizar as energias. Acupuntura e moxabustão eram empregadas somente como último recurso. Se as emoções e a força de vontade do paciente se encontram em equilíbrio, diz o Tratado, obtém-se a cura simplesmente com cereais. Os grãos possuem um poder especial como alimento humano. Água e grãos constituem a raiz da vida, e “a morte sobrevém apenas quando a água e os grãos escasseiam.” O arroz, em particular, é mencionado como alimento vital e harmonizante. Métodos de prepará-lo, e até mesmo o combustível ideal para cozinhá-lo (palha de arroz), são levados em conta.

A essência do Tratado consiste no entendimento de que, por natureza, o homem é saudável, sendo a doença uma anomalia. Para manter ou recuperar a saúde, é necessário apenas viver em harmonia com o meio ambiente. O “autêntico sábio” vive de acordo com as leis do Yin e Yang, as quais governam todos os fenômenos. Ele bebe e come moderadamente, e regula sua vida em conformidade com os ciclos do sol, da lua e das quatro estações. Desfruta, por conseguinte, uma vida longa e feliz. Está mais interessado em prevenir as doenças do que em curá-las.

sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Sagen Ishizuka: A Potência Transformadora do Alimento (Parte Segunda)



Sagen Ishizuka:

A Potência Transformadora do Alimento
(Parte Segunda)

                                                                                                                     Ronald E. Kotzsch




Foi, portanto, uma cultura tradicional e estável que o Comodoro Perry deparou ao invadir com sua esquadra a baía de Edo em julho de 1853. Num gesto tipicamente “sutil” de diplomacia militar, Perry exigiu do Japão a abertura dos portos, prometendo retornar com mais navios caso fosse necessário. O Japão, percebendo que suas espadas e arcos nada podiam contra os canhões americanos, cedeu à exigência. A partir daí, começa a história moderna da nação japonesa.

Orgulhosos e patriotas, não estavam os japoneses absolutamente dispostos a ver seu país transformar-se numa colônia. Restituído o poder político à Família Imperial e instaurado um forte governo central, eles iniciaram um consciente, enérgico e bem sucedido projeto de modernização. O Japão logo compreendeu que, para permanecer independente, necessário era apropriar-se do conhecimento ocidental. Missões oficiais foram enviadas à Europa e América com o propósito de observar, estudar e assimilar elementos-chave da cultura ocidental. A cientistas, engenheiros, militares, advogados e outros especialistas estrangeiros foram oferecidos altos salários para que viessem ao Japão viver e ensinar. Desse modo, o país rapidamente importou e adotou várias criações do ocidente: a ciência e a tecnologia; as técnicas militares; padrões políticos e econômicos. Linhas telegráficas, ferrovias, fábricas despontavam na até então imaculada paisagem japonesa.

O país manteve dois ideais durante esse período. O primeiro resumia-se na expressão fukokukyōhei, “uma nação rica e militarmente forte.” O segundo sintetizava-se nas palavras wakonyōsai, “a alma do Japão e a tecnologia do Ocidente.” Os japoneses recusavam a converter-se numa pálida cópia do Ocidente. Desejavam preservar seu caráter nacional, aquela enigmática e poderosa mistura de cortesia, disciplina e espiritualidade que era o Yamato-damashii, “o espírito do Japão”. Queriam, ansiavam mesmo, assenhorar-se do conhecimento científico e técnico do Ocidente, mas não do “espírito do Ocidente”.

Mas, na realidade, mostrou-se difícil manter essa distinção. Os japoneses logo importaram as novidades científicas, tecnológicas, industriais, políticas, jurídicas. Contudo, também adotaram, com igual fervor, os padrões ocidentais de arte, música, literatura, dança, vestuário, religião, filosofia e moralidade. A elite de Tóquio passou a usar coletes, chapéus, toucas e vestidos longos, e divertia-se em grandes bailes no estilo ocidental. Ela escutava Bach e Beethoven, tocava violino e piano, estuda Kant e Jemery Benthan, e flertava com o Cristianismo. Em quase todas as áreas da vida, o tradicional e oriental foi sendo descartado e substituído pelo moderno e ocidental. Nas recém-instaladas “escolas públicas”, que suplantaram os velhos terakoya, ou “templos escolares”, os pincéis deram lugar às canetas-tinteiro e a maneira japonesa de registrar a música à notação musical ocidental.  Coleções de estátuas budistas, gravuras vívidas e antigos pergaminhos foram vendidos por uma ninharia a colecionadores ocidentais. Templos centenários, frutos do mais puro gênio arquitetônico, foram derrubados e usados para alimentar fogueiras.

Essa rejeição ao antigo e familiar e a adoção cega aos costumes estrangeiros reproduziram-se também no terreno da medicina e nutrição. À época, a medicina ocidental desenvolvia-se rapidamente, e novos e extraordinários meios de tratar as doenças surgiram. No final do século XVIII, William Jenner criou uma vacina contra a varíola. Por volta de 1850, o francês Louis Pasteur tornou pública a teoria segundo a qual a causa primeira das doenças humanas é a invasão do corpo por perigosas formas microscópicas de vida. Uma vez aceito este fundamento da medicina alopática, procurou-se curar as doenças destruindo os patógenos. A descoberta do clorofórmio, no mesmo período, tornou possível o aperfeiçoamento de técnicas cirúrgicas.

Em 1871, os primeiros de uma série de médicos alemães chegaram ao Japão com a missão de praticar e ensinar a medicina ocidental. Em 1883, o governo japonês proibiu a prática da medicina tradicional e erigiu ao posto de medicina oficial do país a alopatia. A Faculdade de Medicina – cujos professores, em sua maioria, eram alemães – transformou-se em secção da jovem Universidade Imperial de Tóquio. Repentinamente, os antigos tratamentos – acupuntura, moxa, massagem e medicina herbária – foram tachados de obsoletos, e aqueles que os praticavam declarados fora da lei. Esses curadores, no entanto, não interromperam abruptamente suas atividades. A maioria deles simplesmente passou a exercer sua arte em segredo, esperando o momento propício para voltar a trabalhar às claras. Mas a partir daí a medicina ocidental foi oficialmente sancionada, e as velhas terapias (e a teoria energética que as embasava), consideradas primitivas e não científicas.

O cenário era similar no campo da nutrição. Na Europa, a moderna ciência da nutrição começa a desenvolver-se em meados do século XIX. Graças principalmente à obra pioneira do bioquímico germânico Justus von Liebig (1803-1873) e seus discípulos, os vários nutrientes disponíveis nos alimentos foram isolados e identificados. Experiências com animais foram realizadas com o propósito de descobrir quais nutrientes – e em que quantidade – eram necessários para manter a vida e seu desenvolvimento. Procedeu-se à análise dos nutrientes de vários alimentos. Essa pesquisa pioneira estabeleceu a base da ciência da nutrição moderna e suas teorias. A proteína foi considerada o nutriente mais importante, essencial ao crescimento e à reparação dos tecidos. Por conseguinte, a carne, os ovos, os queijos e outros produtos animais eram altamente recomendados. Encararam-se os carboidratos como mera fonte de energia, e aos alimentos ricos nesse composto orgânico, tais como batatas e açúcar refinado, atribuíram-se vantagens nutricionais.

Também no território da nutrição, o governo japonês tomou a iniciativa de promover as ideias e práticas do Ocidente. Objetivando aumentar a vitalidade e a força física do povo, as autoridades incentivaram a adição de carne e laticínios à alimentação tradicional. O governo também sugeriu a substituição do arroz pelo pão branco usado no Ocidente. Naquela época, a estatura média do homem japonês correspondia a 1,62 m, enquanto a da mulher japonesa a 1,52 m. Acreditava-se que o segredo da força e do tamanho dos ocidentais, e mesmo da superioridade tecnológica, residia no consumo da carne, trigo e leite.

Os alimentos ocidentais foram-se introduzindo lentamente na dieta japonesa. Ao menos no dejejum das sofisticadas famílias urbanas, torradas com manteiga, salsicha e leite competiam com sopa de missô, arroz e chá. A despeito de seu extenso litoral, o país viu aumentar consideravelmente a demanda por carne, sobretudo bovina e suína, e vários restaurantes especializados em carne de vaca abriram suas portas nas grandes cidades. O açúcar refinado tornou-se um importante ingrediente da culinária japonesa. Provavelmente graças à pressão da indústria açucareira, o dito “açúcar refinado na cozinha é sinal de cultura e requinte” disseminou-se entre a população. Tanto na preparação do arroz e vegetais, como na de doces e sobremesas, o açúcar branco assumiu um papel significativo na culinária japonesa. Batatas foram introduzidas, e seu cultivo, especialmente depois de 1888, encorajado.

A dieta japonesa, é claro, não mudou completamente da noite para o dia. Mesmo hoje, passado mais de um século, arroz, missô, algas marinhas, conservas de vegetais, etc. continuam presentes no dia a dia. O fenômeno explica-se, por um lado, pela dificuldade de eliminar costumes antiquíssimos; e, por outro, pela impossibilidade de o Japão produzir muita carne e alimentos de origem animal. O país é pequeno, mas populoso; e quatro quintos de seu território compõem-se de montanhas escarpadas. As reduzidas terras cultiváveis destinam-se à plantação de arroz, feijão e vegetais. Para vacas e ovelhas pastarem nas terras íngremes impróprias para agricultura, necessário era que viessem ao mundo com outra configuração anatômica. Na melhor das hipóteses, uma família de agricultores poderia criar uma vaca, alguns porcos e algumas galinhas. Assim, dado o seu alto custo, a carne era, e continua sendo, um produto quase proibitivo. Houve, todavia, mudanças no estilo japonês de se alimentar; e ao longo do Período Menji essas mudanças continuaram.

domingo, 30 de setembro de 2018

Sagen Ishizuka: A Potência Transformadora do Alimento (Parte Primeira)


Sagen Ishizuka:
A Potência Transformadora do Alimento
(Parte Primeira)
                                                                                                                                     Ronald E. Kotzsch




É George Ohsawa conhecido geralmente como o fundador da macrobiótica. Embora tenha transmitido ao movimento sua marca pessoal, não foi ele, porém, seu criador. O próprio Ohsawa cita, com frequência, o médico japonês Sagen Ishizuka como inspirador e mestre. Ishizuka, com efeito, iniciou o movimento que mais tarde se chamaria “macrobiótica”. Seus ensinamentos constituem o alicerce sobre o qual Ohsawa e outros mais ergueram a própria obra.

Nascido em 1850, no ocaso do Período Edo (1600-1868), Sagen Ishizuka viveu a fase adulta durante as primeiras décadas do Japão moderno. Nessa época, passou o Japão por céleres e radicais mudanças, substituindo vários elementos de sua cultura tradicional por empréstimos do Ocidente. Ishizuka, percebendo que no campo da alimentação e medicina muitos dos conhecimentos antigos estavam sendo perdidos, resgatou-os e apresentou-os com roupagem moderna e científica.

Do século XVII à primeira metade do século XIX, o Japão isolou-se progressivamente do resto do mundo. A ninguém era permitido sair do país ou a ele retornar, caso houvesse conseguido deixá-lo. Estrangeiros que porventura se encontrassem em solo nipônico corriam risco de vida; e mesmo náufragos na costa do país não eram tolerados. Somente um punhado de comerciantes holandeses exercia sem maiores problemas suas atividades econômicas numa minúscula ilha no porto de Nagasaki.

Para a maioria da população, o sonho de estabilidade e paz internas se havia concretizado. Um forte governo central sob o comando de um líder militar, o shōgun, mantinha o controle quase absoluto de um sistema feudal complexo. A população dividia-se em quatro classes sociais fixas: samurais, agricultores, artesãos e comerciantes – cada qual com seus direitos e deveres específicos. Distúrbios políticos ou sociais, se havia, não alcançavam o menor significado. A economia crescia, embora muito lentamente e dentro dos limites de uma sociedade agrícola e feudal. Vários centros urbanos, incluindo Edo (hoje Tóquio) e Osaka, desenvolveram-se, e neles uma rica cultura artística emergiu. Literatura, pintura, teatro e artesanato atingiram níveis de excelência. A cultura como um todo caracterizava-se por um refinamento estético talvez nunca alcançado na história da humanidade. Da perspectiva do século XXI, o Japão do Período Edo ou Tokugawa se assemelha a um exótico paraíso adornado de âmbar.

Em pleno século XIX era o Japão, portanto, comparado ao Ocidente, um país ainda medieval, intocado pela Revolução Industrial e Científica. A alimentação e a medicina refletiam esse ambiente. A dieta havia mudado muito pouco durante os séculos. O arroz representava a matéria-prima mais importante. Desempenhava ele um papel tão central na vida da nação, que constituía a base do intercâmbio econômico. A riqueza do senhor feudal era mensurada pela quantidade de arroz produzido anualmente por suas terras. Considerava-se o arroz uma dádiva concedida aos ancestrais sobre-humanos da nação diretamente pela deusa do sol. Um provérbio muito comum à época ensinava: “O arroz é Buda.” Enquanto o grão parcialmente polido alimentava os ricos, o grão integral saciava o comum dos homens. Os pobres misturavam o arroz a outros cereais, como cevada e trigo, ou reservavam-no para as férias ou emergências. Um ditado muito popular entre os camponeses – “Chegou mesmo a dar-lhe arroz” – indicava que a doença que atingira um pobre coitado era tão grave, que o autorizava a alimentar-se de arroz. Dizia-se go-han, “honorável arroz”, para referir-se a toda espécie de refeição.

Outro produto muito apreciado era a soja, usada sob a forma de pasta fermentada (misso), molho fermentado (shoyu) e coágulo (tofu). Ingeria-se uma grande variedade de vegetais, e com o nabo comprido japonês (daikon) e a película de arroz (nuka) elaborava-se uma deliciosa conserva chamada takuan. Peixes e vegetais do mar eram também muito utilizados. Frutas, porém, não constavam como parte importante da dieta, sendo a tangerina e o caqui as únicas regularmente cultivadas.

Pouca carne era consumida, dados os preceitos religiosos que a proibiam tanto por parte do Xintoísmo autóctone quanto do Budismo importado por volta do ano 400 d.C. Frango e aves selvagens representavam a maior parte do que se consumia em termos de carne. A criação de animais de grande porte para abate era virtualmente desconhecida. O gado criado destinava-se basicamente à tração animal, pois a ideia de beber leite ou usá-lo para produzir manteiga ou queijo era quase inconcebível. Em 1859, quando o embaixador americano Townsend Harris reclamou uma vaca para beber-lhe o leite, o diplomata japonês escandalizou-se. Ainda no período moderno, comportamentos semelhantes persistiam em determinados rincões do país. Em sua autobiografia intitulada “A Filha do Samurai”, Etsuko Sugimoto narra a própria infância no interior do Japão não muito depois da chegada de Harris. Acreditava-se que o consumo de leite e seus derivados converteria o homem em quadrúpede. Além disso, o uso da carne bovina incluía-se entre os atos abomináveis. Quando o avô de Etsuko, por razões médicas, se viu obrigado a ingerir carne, as portas do santuário da família foram fechadas a fim de que os espíritos dos ancestrais não se sentissem insultados.

A medicina tradicional baseava-se em ideias e práticas que remontavam à aurora da civilização chinesa. Segundo essa tradição, a fisiologia e a saúde humanas devem ser entendidas a partir da noção de Ki (Ch’i, em chinês), a energia vital que permeia todo o universo e transmite vida ao corpo. O ki flui ao longo do corpo por canais conhecidos como meridianos. Há dois meridianos principais, um na região frontal e outro na região dorsal do corpo, além de seis nos braços e seis nas pernas. Cada um desses doze meridianos se conecta a um órgão ou função do corpo, e o desequilíbrio em um órgão manifesta-se como deficiência, estagnação ou excesso de Ki no meridiano que lhe é correspondente. Era por meio do reequilíbrio, estimulando ou sedando os canais energéticos, que as várias artes médicas tratavam as doenças. A acupuntura lançava mão de agulhas de ouro ou prata inseridas em pontos estratégicos ao longo dos meridianos com o propósito de regular o Ki. A moxabustão buscava estimular esses pontos queimando sobre os mesmos pequenas quantidades da erva artemísia. No shiatsu, a estimulação e o reequilíbrio realizavam-se por intermédio da pressão digital. Ervas também eram usadas, agindo internamente sobre os órgãos. O objetivo dessas diferentes técnicas era o mesmo: estabelecer um livre e harmonioso fluxo de Ki através de todo o organismo, a fim de que o “Ki primordial”, genki (termo sino-japonês para “saúde”) fosse reconquistado.

Outro braço dessa tradição médica era a regulação pela dieta. Embora a maioria dos curadores a usassem como medida suplementar a suas técnicas de resultado mais imediato, algum deles a consideravam o tratamento por excelência. No filme “O Barba Ruiva” (Akahige), o diretor Akira Kurosawa se detém sobre a carreira de um médico do Período Tokugawa. Ainda que devotado principalmente aos cuidados dos pobres, Barba Ruiva responde ao chamado de um rico senhor feudal. O nobre– balofo e inchado– mal consegue manter-se de pé. O médico encara-o friamente, cobra-lhe uma quantia exorbitante (para manter sua clínica) e aconselha-o a não comer senão papa de arroz integral por um período indefinido. A expressão de incredulidade na face gorducha do homem comprova que a dietoterapia era um elemento secundário, e não principal, na medicina do Japão pré-moderno.

sábado, 4 de agosto de 2018

Levando a Gratidão à Mesa


Levando a Gratidão à Mesa
Lino Stanchich 












A
ntes de comer, deveríamos dar graças. Faz isso realmente diferença? Ora, como você se sente quando um amigo expressa amor e gratidão por você? Pois é exatamente assim que os alimentos reagem.

O alimento está vivo. É uma bênção do solo. Não é algo inerte, imutável, morto. Muito me entristece ver um alimento sendo desperdiçado ou desvalorizado. É como se um amigo do peito estivesse sendo rejeitado ou criticado sem razão.  A abundância tem seu lado negativo: fez que as pessoas perdessem o sentimento de reverência pelo alimento. A prática do jejum cria uma profunda consciência da bênção que o alimento é.

Fale com o alimento como se ele estivesse vivo, pois efetivamente ele está vivo! Fale em voz baixa ou em pensamento. Diga a sua refeição: “Por favor, venha para dentro do meu corpo. Cure-me, deixe-me com mais energia, deixe-me mais eufórico ou mais tranquilo; ajude-me a encontrar meu eixo.” Direcione a energia do alimento a fim de que ela possa suprir suas necessidades individuais.

Não tenha dúvida: o alimento é capaz de reconhecer sua gratidão. E reagirá a ela! Pense nos diferentes alimentos dispostos no prato como pequenos gênios ou espíritos que entrarão em seu corpo e farão maravilhas por você. Conscientize-se de quão afortunado você é por ter acesso aos alimentos. Expresse sua gratidão à Natureza, a Deus, ao Universo, a todas as pessoas que contribuíram para que o alimento chegasse até você, e especialmente ao próprio alimento.

Somente após ter dado graças é que você deveria começar a comer.

Sugestão de prece para antes das refeições

Obrigado, Universo, por dar-me a vida, por inspirar-me e orientar-me. Obrigado por meus pais, por meu cônjuge e amigos, com os quais compartilho a vida. Agradeço-lhe profundamente pelo alimento que estou prestes a ingerir. Agradeço a todos os que contribuíram para que ele chegasse à minha mesa, desde o camponês que fê-lo crescer até o responsável por transportá-lo. Agradeço especialmente ao cozinheiro que o preparou e há pouco mo serviu. Que este alimento entre no meu corpo e me torne mais saudável e feliz. Que ele, purificando meu corpo, me faça um ser humano melhor, mais consciente e capaz de tornar o mundo mais saudável, pacífico e feliz. Amém.