quinta-feira, 28 de abril de 2011

A desobediência civil ao alcance do seu garfo


 Metamorfose 9
Publicação do Restaurante Metamorfose Alimentação Recondicionadora Autêntica
Rua Santa Luzia 405/207, Castelo, Rio de Janeiro. Tels.: 2262-6306 e 2532-0084
Edição, redação, revisão e tradução: Laercio de Vita

O ativista e escritor Sandor Katz anda com a agenda cheia. Ele tem percorrido a América e a Austrália ensinando técnicas tradicionais de fermentação e dando palestras sobre o nosso insano sistema alimentar e os movimentos populares que lutam por uma produção autônoma de alimentos. Katz é autor dos amplamente conhecidos Wild Fermentation e The Revolution Will Not Be Microwaved. A seguir, ele nos fala de cultura alimentar alternativa e de seu trabalho devocional com fermentações.

A DESOBEDIÊNCIA CIVIL
AO ALCANCE DO SEU GARFO
           Por que comer pode ser um ato de desobediência civil?
Cada vez mais, os alimentos disponibilizados pelo sistema dominante não são saudáveis nem nutritivos.  Os Estados Unidos, por exemplo, aprovaram a irradiação sistemática sobre a alface e outras verduras. E cada vez mais, testemunhamos as autoridades criando empecilhos legais e práticos à produção em pequena escala. Para que os alimentos estejam livres de contaminação; para que forneçam os nutrientes necessários; para que sejam produzidos com técnicas que preservam o solo, em vez de esgotá-lo e poluí-lo; precisamos resistir à tendência centralizadora que governa a produção agrícola. Precisamos lutar para que a agricultura retorne às mãos dos autênticos agricultores e para que os valores vitais sejam reintegrados à estrutura de nossas comunidades.
Quão disseminado está o movimento de consumidores contra a produção meramente comercial de alimentos?
O movimento por um alimento local cultivado sem produtos químicos sintéticos está crescendo em todos os lugares. Este movimento, porém, deve ser mais que um simples movimento de consumidores. É preciso que nos libertemos do papel limitado e infantil de consumidores. Aqueles que desejam alimentos de qualidade devem participar de sua produção. Sustentabilidade exige participação.
Se é verdade que somos o que comemos, podemos então afirmar que nosso corpo e nossa alma estão à mercê  do agronegócio?
Quando ingerimos alimentos desvitalizados, nós adoecemos. Se isso se dá ao longo das gerações, nós degeneramos como espécie. De fato, um forte instinto de sobrevivência perpassa a luta por alimentos cultivados com métodos sustentáveis. Temos de recuperar os alimentos das mãos das grandes corporações. Além do mais, do nosso alimento não vem somente saúde e bem-estar, mas poder e dignidade. A produção, a transformação e a distribuição de alimentos devem voltar a ser atividades básicas da comunidade.
Como se libertar do labirinto das grandes corporações do alimento e se tornar diretamente responsável pela própria nutrição e saúde?
Use produtos integrais e procure locais onde possa comprá-los diretamente dos agricultores. Agindo assim, você escapa das mãos das grandes corporações e ainda adquire poder, pois aprende sobre a origem do alimento e sobre os meios pelos quais ele é produzido. Não precisamos ser especialistas em nutrição para comer bem e permanecer saudáveis.
Em que consiste o movimento underground de que você fala?
O movimento underground consiste nos esforços das comunidades para tornar possível o acesso aos alimentos fora dos domínios das grandes corporações. Inclui ações que vão desde a prática de salvar sementes (em vez de comprá-las geneticamente modificadas), até o comércio informal envolvendo hortas caseiras e produtos domésticos. Muitas leis, supostamente com o objetivo de proteger-nos, defendem a produção em massa e criam obstáculos à produção em pequena escala, não nos deixando senão a alternativa da produção underground. Devemos, portanto, apoiar e expandir o mercado underground, o único em que a resistência ao sistema dominante se expressa.
Que você encontrou nas viagens que fez à Austrália e América com o intuito de ensinar fermentações?
Conheci movimentos e projetos envolvendo pessoas preocupadas em tornar possível a produção de alimentos saudáveis para si próprias e para as comunidades. O alimento é uma questão que transcende ideologias. Todos temos de comer, e diversas pessoas de diferentes culturas já estão percebendo a urgência de lutar para resgatar o alimento das mãos das grandes corporações.
No que concerne à fermentação, uma constante que percebi nesses lugares foi o medo exagerado que os alimentos preservados sem produtos químicos e refrigeração inspiram. Nós somos culturalmente condicionados a acreditar que não podemos comer com segurança a não ser lançando mão dos sistemas intensivos de refrigeração e dos conservantes químicos. Quando muito, imaginamos que os alimentos preservados sem esses recursos exigem técnicas e conhecimentos especializados e condições supercontroladas. No entanto, as fermentações consistem, de fato, num antigo ritual levado a cabo por pessoas comuns e cujo resultado é um alimento seguro.
Como criar um amplo movimento capaz de apresentar alternativas ao sistema alimentar dominante?
Há múltiplos movimentos emitindo críticas eloquentes, de diversas perspectivas, ao sistema alimentar dominante. Os alimentos refletem todas as questões políticas importantes: mudanças climáticas e pegadas de carbono; controle de territórios e recursos hídricos; segurança química e toxidade; poluição; biodiversidade e extinção das espécies; propriedade dos recursos genéticos; sobrevivência cultural versus assimilação e homogeneização; mão de obra e migração; direitos humanos e direitos dos animais; toda espécie de justiça. Os movimentos sociais focados no alimento são imprescindíveis, e as questões que levantam precisam assumir feições cada vez mais abrangentes. É claro que a construção de movimentos sociais significativos exige mais do que a produção de críticas eloquentes. Temos de trabalhar muito, se aspiramos a uma ampla participação da população. Mas estou confiante, tanto pela crescente participação das pessoas em movimentos que lutam por um alimento saudável, como pela troca estimulante de experiências que esses movimentos estabelecem entre si.
Devemos contar com a política no que diz respeito à criação de uma legislação que vá ao encontro dos direitos dos trabalhadores rurais, que limite o uso de pesticidas, que estimule a produção de orgânicos e sua comercialização?
Sim. Muito pode ser feito através da arena política. Governos e outras entidades exercem enorme poder sobre a produção e distribuição de alimentos, e mudanças na política podem ter grandes repercussões. Sou grato aos ativistas que agem nos terrenos da política pública e de regulamentação, e incito qualquer um a tornar-se um verdadeiro cidadão, atuando, o quanto for preciso, na esfera política. Também acredito que cada um de nós deve tomar parte nas decisões que buscam a produção de um alimento saudável para nós mesmos, para nossa família e para nossa comunidade. Repito: sustentabilidade implica participação.
Como você vê as forças da globalização que controlam a indústria e o comércio alimentar mundial?
Globalização e produção em massa só beneficiam os atores da economia dominante, ou seja, pessoas e instituições que concentram recursos. Os alimentos produzidos pelas comunidades de base são os únicos que representam uma fonte autêntica de economia independente e segura. Não me oponho ao comércio internacional. A experiência de ingerir alimentos de outras culturas e regiões é, de fato, excitante, estimulante e amplia nossos horizontes. O problema é quando tudo o que comemos vem de regiões remotíssimas. Os importados têm seu lugar nas festas e ocasiões especiais, mas não devem ser consumidos como alimentos diários.
Você tem afirmado que os alimentos produzidos pelas corporações seguem uma longa e inescrutável cadeia de transações invisíveis para o consumidor.
Sim. Quando você cultiva o alimento, você sabe tudo sobre ele; quando o obtém diretamente do produtor, basta um pouco de curiosidade para ter acesso a informações importantes. Contudo, se compramos frutas ou vegetais no supermercado, não sabemos sequer de que continente eles vieram, muito menos como cresceram e foram transportados. Alimentos processados com os mais diversos ingredientes escondem histórias ainda mais comprometedoras e ocultas. Tornamo-nos mais poderosos quando sabemos de onde vem nosso alimento e quando conhecemos as relações (dos homens entre si e dos homens com a natureza) das quais eles são a síntese concreta e o resultado.
A irradiação tem-se tornado uma prática amplamente utilizada pelo comércio de alimentos, justamente porque facilita o transporte de longa distância. Como evitar a irradiação e ao mesmo tempo contar com um alimento seguro?
A irradiação é um método de esterilização desenvolvido pelo Departamento de Energia dos Estados Unidos. É tipicamente usado nos casos em que o sistema de segurança dos alimentos tem falhado, o que indica que a produção em larga escala leva a problemas de contaminação. Infelizmente, a irradiação destrói enzimas e algumas vitaminas, gerando um alimento pobre em nutrientes e menos digerível. A solução consiste na produção em pequena escala, cujo resultado são alimentos seguros. Não se resolvem os problemas gerados pela tecnologia empregando mais tecnologia, o que só aumentaria inevitavelmente a gama de problemas. Não precisamos de irradiação para produzir alimentos seguros e saudáveis.
Os movimentos focados no alimento são movimentos que lutam pela sobrevivência cultural?
A produção de alimentos e os diferentes modos pelos quais ela se manifesta em distintos nichos ecológicos são o coração das inumeráveis culturas e práticas sociais. A globalização do alimento destrói e homogeneíza as culturas. A sobrevivência cultural, onde quer que seja, depende do ressurgimento da produção de alimentos com base comunitária.