quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

O Milagre da Mastigação


O Milagre da Mastigação
Lino Stanchich

D
urante a Segunda Guerra Mundial, atuava meu pai, Antonio Stanchich, na Marinha Mercante Italiana. Em 1943, com a rendição da Itália, cruzando seu navio os mares da Grécia, toda a tripulação de trinta e duas pessoas foi capturada pelos nazistas e enviada a um campo de concentração na Alemanha. Contígua ao campo de concentração havia uma fábrica onde todos os prisioneiros eram forçados a executar trabalhos fisicamente extenuantes.

Os invernos eram rigorosos; as instalações, insuficientemente aquecidas; as roupas, inadequadas; a alimentação, escassa. Contou-me meu pai que, embora o frio o poupasse em certos momentos, a fome, essa não o abandonava jamais.

Pela manhã, os prisioneiros recebiam uma xícara de café de chicória e uma fatia de pão. No almoço e no jantar, uma tigela de sopa era tudo o que conseguiam. Submergido na sopa, feita basicamente de batata, encontrava-se ocasionalmente um pequeno pedaço de carne. Presos morriam de fome todos os dias. Durante os meses de inverno, mortes em decorrência da exposição às baixas temperaturas aumentavam consideravelmente. A vida no campo de concentração resumia-se, enfim, a uma constante luta pela sobrevivência.

Em tais condições, fez meu pai uma descoberta que lhe salvaria a vida. Uma vez, sedento, reteve intuitivamente a água fria na boca mastigando-a por um tempo. A temperatura da água se elevou e ele enfim a engoliu.  Habituou-se, então, a mastigar a água 10 ou 15 vezes. Um dia, porém, estando a água muito fria, ele a mastigou 50 vezes!

Pareceu a meu pai que a água submetida a tal operação, afora matar-lhe a sede, proporcionava-lhe também energia. A princípio, julgou ser o fenômeno produto da sua imaginação. Entretanto, após repetir o processo seguidas vezes, só lhe restou concluir que mastigar a água 50 ou mais vezes resultava, efetivamente, em mais energia para o seu organismo. Tal possibilidade desconcertou-o: como poderia dar-lhe energia algo tão banal como uma pouca de água? Quarenta anos mais tarde, o mistério foi revelado.

Movido tanto pelo entusiasmo quanto pela curiosidade, o Sr. Stanchich ampliou suas experiências. Ele começou a mastigar cada bocado de alimento 50 vezes; depois 75; depois 100, 150, 200, chegando mesmo a 300 vezes cada bocado e às vezes mais. Concluiu então que o número mágico de mastigadas era 150, pois, embora pudesse mastigar quase indefinidamente, a partir dessa marca o aumento de energia se estabilizava.

A técnica desenvolvida por meu pai não podia ser mais simples: pôr uma colher de sopa de líquido ou sólido na boca, mastigar e contar as mastigadas. Ele comunicou sua descoberta aos companheiros; mas quase todos reagiram da mesma forma: “Ora, Tony, isso é coisa da sua imaginação!” No entanto, dois entre eles juntaram-se a meu pai em suas sessões de mastigação e passaram a dividir suas impressões. Reconheceram afinal que a técnica da mastigação proporcionava-lhes mais energia. Eles sentiam menos fome e menos frio.

Dois anos depois, em 1945, as Forças Aliadas alcançaram o campo de concentração e libertaram os prisioneiros. Meu pai, passados alguns meses, assomou à porta de nossa casa em Fiume-Rijeka, cidade então pertencente à Itália. Pele e osso, fantasma humano diante de nossos olhos incrédulos e embaçados, nosso querido pai, sabe Deus como, sobrevivera! 

Dos trinta e dois tripulantes capturados pelos alemães e levados ao campo de concentração, somente três sobreviveram: meu pai e os dois que se dispuseram a praticar a mastigação consciente.

No ano seguinte, em 1946, durante um grande piquenique da família, meu pai compartilhou comigo sua experiência do campo de concentração. Ele atribuiu à sua técnica de mastigação o fato de ter sobrevivido. Terminado o relato, aconselhou-me: “Filho, quando se sentir debilitado, doente, ameaçado pelo frio ou pela fome, mastigue cada bocado no mínimo 150 vezes.” Eu tinha apenas 14 anos. Havia víveres suficientes em nossa casa e eu me encontrava saudável. Aquelas palavras, no entanto, ficaram gravadas na minha mente.

Em 1949, a então Iugoslávia viveu momentos de turbulência política e o governo comunista proibiu que cidadãos italianos viajassem para Itália. Muitos que se opunham ao governo tentaram escapar do país. Em 10 de março daquele ano, tentei eu próprio atravessar a fronteira. Mas fui capturado e condenado a dois anos de trabalhos forçados.

Embora não tão abominável quanto um campo de concentração, a prisão a que fui recolhido tinha lá seu regime desumano e extremamente ameaçador. A dieta era similar a que meu pai fora submetido no campo de concentração: café de chicória e um pedaço de pão no desjejum; uma tigela de sopa, geralmente com cevada e feijão, no almoço e no jantar. Uma vez por semana, um pedaço de carne dava o ar de sua graça. Eu exultava quando a sopa incluía 20 grãos de feijão. Na verdade, eu vivia faminto a maior parte do tempo.

Mas a permissão de receber uma vez por mês um pequeno pacote postado por minha família, fez toda a diferença. Como os pacotes nunca chegavam, pedi à minha mãe que me enviasse cebolas, sal marinho e torradas de pão de trigo integral – artigos que não despertavam a cobiça dos guardas.

Esta suplementação, comparada à privação por que passou meu pai, equivalia a uma bênção dos deuses. Eu podia cortar a cebola em fatias, mergulhá-las no sal marinho e mastigá-las com um pedaço de torrada integral. Seguido por um ou dois copos de água, esse pasto satisfazia-me completamente. Muito bem mastigado, ele produzia uma grande energia e um estranho sentimento de confiança e coragem. Eu simplesmente não temia nada nem ninguém. Pobre de mim: mal sabia que todo esse atrevimento não era senão efeito do excesso de sal...

Na época, eu não tinha consciência do quão poderoso − e perigoso! − é o sal. O sal tornou-me inacreditavelmente agressivo. Na verdade, estupidamente agressivo. Criei confusão e fui obrigado a permanecer na solitária, completamente nu, durante dez dias. Mortes por hipotermia eram comuns. Mas eu sobrevivi. Sobrevivi graças ao conselho de meu pai.

Eu mastigava de acordo com as suas instruções, ou seja, no mínimo 150 vezes cada bocado. Mas introduzi uma variante: eu mastigava de olhos fechados. Os resultados foram excelentes.  Eu conseguia anular a influência daquele meio deprimente. Além disso, fechar os olhos internalizava a energia. Não observar o mundo exterior punha a energia a serviço exclusivamente do mundo interno, fortalecendo-me ainda mais.

Minha experiência na prisão afetou-me profundamente. Eu era um jovem alegre e afável. Tornei-me um homem ríspido e amargo. Quando tornei a casa em 1951, aparentando muito mais do que meus 19 anos, ouvi de meu irmão esta troça: “Se eu o visse numa estrada escura, eu lhe daria minha carteira de dinheiro antes que você ma pedisse.”