terça-feira, 28 de março de 2017

Por que comer bem é um ato de desobediência civil



Por que comer bem é um ato de desobediência civil


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á uma revolução em curso. Não se trata de um conflito violento, mas sim de uma pacífica rebelião culinária. Dar-lhe-ei, leitor, um exemplo. Numa cidade com aproximadamente oito mil habitantes, existe um grupo chamado Clube do Pão. (Não posso identificar a cidade, sob pena de impedir a continuidade do grupo.) O Clube do Pão nascera em 2002 como ponto de venda dos pães artesanais produzidos por B. (é prudente também não identificá-lo), um entusiasta dos processos fermentativos com quem topei em minhas andanças.

Desde o começo houve um aspecto marginal envolvendo a distribuição das fornadas de B. Ele confidenciou-me que, se pudesse, exerceria seu trabalho de acordo com a lei. O fato é que, em se tratando de uma produção em pequeníssima escala, não lhe seria possível obedecer ao que a lei impõe. Para instalar um forno dentro dos padrões legais, teria que contrair dívidas consideráveis e depois assar o próprio traseiro para pagá-las, ou seja, trabalhar sete dias por semana e 24 horas por dia. Provavelmente acabaria odiando assar pães e contratando outras pessoas para fazê-lo. Tornar-se-ia, enfim, um empresário responsável. Para não correr este risco, ele preferiu encarnar o papel de padeiro fora da lei. Depois de anos mantendo seu estilo marginal de produzir pães, B. continua amando o que faz e ainda é remunerado por isso. Julgo que todos os subempregados ganhariam se abandonassem seus trabalhos e se dedicassem a algo semelhante. Libertar-se-iam, ao menos, da condição servil em que se encontram. Não deixariam de ser, porém, tachados de infratores...

As leis atuais dificultam bastante, senão totalmente, a produção e distribuição em pequena escala de alimentos artesanais. Vender pão caseiro ou qualquer outro alimento elaborado numa cozinha doméstica é proibido pela maioria dos códigos sanitários dos diversos países. Se um pequeno fazendeiro pretende vender a carne do gado que cria, não poderá abatê-lo: terá de transportá-lo até um matadouro comercial. Se um pequeno produtor de leite e seus derivados pretende vendê-los, terá de submetê-los à pasteurização, processo que diminui a qualidade nutricional, a digestibilidade e o sabor daqueles alimentos.  Quanto aos produtores de cidra, a exigência consiste em pasteurizar ou irradiar a bebida. Em outras palavras, o alimento autêntico, cada vez mais fora da lei, está sendo substituído invariavelmente pelos produtos industrializados. Leis que ditam padrões alimentares são determinadas pelo modelo de produção em massa, no qual uniformidade e esterilidade são tudo, condenando grande parte do comércio local de alimentos autênticos à ilegalidade. Comer bem, portanto, tornou-se um ato de desobediência civil. E o Clube do Pão constitui, sem dúvida, uma trincheira de resistência política.

Nas primeiras semanas, o Clube do Pão serviu apenas como ponto de venda dos sessenta pães assados por B. Mas nas semanas subsequentes as pessoas já não iam embora imediatamente após conseguirem seus pães: permaneciam lá trocando ideias e experiências gustativas e culinárias, especialmente depois que T. e M. começaram a trazer seus queijos de cabra artesanais. Hoje o Clube do Pão disponibiliza leite cru (não pasteurizado), ovos caipiras e produtos sazonais de vários agricultores. Ocasionalmente, podem-se encontrar salmões pescados localmente, algas coletadas a poucos quilômetros, cogumelos selvagens, além de méis e vinhos caseiros. Os membros ainda trazem pratos elaborados por eles mesmos, tais como quiches, muffins, cheesecake, rolinhos de canela e tortas variadas.

Sandor Katz