sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Sagen Ishizuka: A Potência Transformadora do Alimento (Parte Segunda)



Sagen Ishizuka:

A Potência Transformadora do Alimento
(Parte Segunda)

                                                                                                                     Ronald E. Kotzsch




Foi, portanto, uma cultura tradicional e estável que o Comodoro Perry deparou ao invadir com sua esquadra a baía de Edo em julho de 1853. Num gesto tipicamente “sutil” de diplomacia militar, Perry exigiu do Japão a abertura dos portos, prometendo retornar com mais navios caso fosse necessário. O Japão, percebendo que suas espadas e arcos nada podiam contra os canhões americanos, cedeu à exigência. A partir daí, começa a história moderna da nação japonesa.

Orgulhosos e patriotas, não estavam os japoneses absolutamente dispostos a ver seu país transformar-se numa colônia. Restituído o poder político à Família Imperial e instaurado um forte governo central, eles iniciaram um consciente, enérgico e bem sucedido projeto de modernização. O Japão logo compreendeu que, para permanecer independente, necessário era apropriar-se do conhecimento ocidental. Missões oficiais foram enviadas à Europa e América com o propósito de observar, estudar e assimilar elementos-chave da cultura ocidental. A cientistas, engenheiros, militares, advogados e outros especialistas estrangeiros foram oferecidos altos salários para que viessem ao Japão viver e ensinar. Desse modo, o país rapidamente importou e adotou várias criações do ocidente: a ciência e a tecnologia; as técnicas militares; padrões políticos e econômicos. Linhas telegráficas, ferrovias, fábricas despontavam na até então imaculada paisagem japonesa.

O país manteve dois ideais durante esse período. O primeiro resumia-se na expressão fukokukyōhei, “uma nação rica e militarmente forte.” O segundo sintetizava-se nas palavras wakonyōsai, “a alma do Japão e a tecnologia do Ocidente.” Os japoneses recusavam a converter-se numa pálida cópia do Ocidente. Desejavam preservar seu caráter nacional, aquela enigmática e poderosa mistura de cortesia, disciplina e espiritualidade que era o Yamato-damashii, “o espírito do Japão”. Queriam, ansiavam mesmo, assenhorar-se do conhecimento científico e técnico do Ocidente, mas não do “espírito do Ocidente”.

Mas, na realidade, mostrou-se difícil manter essa distinção. Os japoneses logo importaram as novidades científicas, tecnológicas, industriais, políticas, jurídicas. Contudo, também adotaram, com igual fervor, os padrões ocidentais de arte, música, literatura, dança, vestuário, religião, filosofia e moralidade. A elite de Tóquio passou a usar coletes, chapéus, toucas e vestidos longos, e divertia-se em grandes bailes no estilo ocidental. Ela escutava Bach e Beethoven, tocava violino e piano, estuda Kant e Jemery Benthan, e flertava com o Cristianismo. Em quase todas as áreas da vida, o tradicional e oriental foi sendo descartado e substituído pelo moderno e ocidental. Nas recém-instaladas “escolas públicas”, que suplantaram os velhos terakoya, ou “templos escolares”, os pincéis deram lugar às canetas-tinteiro e a maneira japonesa de registrar a música à notação musical ocidental.  Coleções de estátuas budistas, gravuras vívidas e antigos pergaminhos foram vendidos por uma ninharia a colecionadores ocidentais. Templos centenários, frutos do mais puro gênio arquitetônico, foram derrubados e usados para alimentar fogueiras.

Essa rejeição ao antigo e familiar e a adoção cega aos costumes estrangeiros reproduziram-se também no terreno da medicina e nutrição. À época, a medicina ocidental desenvolvia-se rapidamente, e novos e extraordinários meios de tratar as doenças surgiram. No final do século XVIII, William Jenner criou uma vacina contra a varíola. Por volta de 1850, o francês Louis Pasteur tornou pública a teoria segundo a qual a causa primeira das doenças humanas é a invasão do corpo por perigosas formas microscópicas de vida. Uma vez aceito este fundamento da medicina alopática, procurou-se curar as doenças destruindo os patógenos. A descoberta do clorofórmio, no mesmo período, tornou possível o aperfeiçoamento de técnicas cirúrgicas.

Em 1871, os primeiros de uma série de médicos alemães chegaram ao Japão com a missão de praticar e ensinar a medicina ocidental. Em 1883, o governo japonês proibiu a prática da medicina tradicional e erigiu ao posto de medicina oficial do país a alopatia. A Faculdade de Medicina – cujos professores, em sua maioria, eram alemães – transformou-se em secção da jovem Universidade Imperial de Tóquio. Repentinamente, os antigos tratamentos – acupuntura, moxa, massagem e medicina herbária – foram tachados de obsoletos, e aqueles que os praticavam declarados fora da lei. Esses curadores, no entanto, não interromperam abruptamente suas atividades. A maioria deles simplesmente passou a exercer sua arte em segredo, esperando o momento propício para voltar a trabalhar às claras. Mas a partir daí a medicina ocidental foi oficialmente sancionada, e as velhas terapias (e a teoria energética que as embasava), consideradas primitivas e não científicas.

O cenário era similar no campo da nutrição. Na Europa, a moderna ciência da nutrição começa a desenvolver-se em meados do século XIX. Graças principalmente à obra pioneira do bioquímico germânico Justus von Liebig (1803-1873) e seus discípulos, os vários nutrientes disponíveis nos alimentos foram isolados e identificados. Experiências com animais foram realizadas com o propósito de descobrir quais nutrientes – e em que quantidade – eram necessários para manter a vida e seu desenvolvimento. Procedeu-se à análise dos nutrientes de vários alimentos. Essa pesquisa pioneira estabeleceu a base da ciência da nutrição moderna e suas teorias. A proteína foi considerada o nutriente mais importante, essencial ao crescimento e à reparação dos tecidos. Por conseguinte, a carne, os ovos, os queijos e outros produtos animais eram altamente recomendados. Encararam-se os carboidratos como mera fonte de energia, e aos alimentos ricos nesse composto orgânico, tais como batatas e açúcar refinado, atribuíram-se vantagens nutricionais.

Também no território da nutrição, o governo japonês tomou a iniciativa de promover as ideias e práticas do Ocidente. Objetivando aumentar a vitalidade e a força física do povo, as autoridades incentivaram a adição de carne e laticínios à alimentação tradicional. O governo também sugeriu a substituição do arroz pelo pão branco usado no Ocidente. Naquela época, a estatura média do homem japonês correspondia a 1,62 m, enquanto a da mulher japonesa a 1,52 m. Acreditava-se que o segredo da força e do tamanho dos ocidentais, e mesmo da superioridade tecnológica, residia no consumo da carne, trigo e leite.

Os alimentos ocidentais foram-se introduzindo lentamente na dieta japonesa. Ao menos no dejejum das sofisticadas famílias urbanas, torradas com manteiga, salsicha e leite competiam com sopa de missô, arroz e chá. A despeito de seu extenso litoral, o país viu aumentar consideravelmente a demanda por carne, sobretudo bovina e suína, e vários restaurantes especializados em carne de vaca abriram suas portas nas grandes cidades. O açúcar refinado tornou-se um importante ingrediente da culinária japonesa. Provavelmente graças à pressão da indústria açucareira, o dito “açúcar refinado na cozinha é sinal de cultura e requinte” disseminou-se entre a população. Tanto na preparação do arroz e vegetais, como na de doces e sobremesas, o açúcar branco assumiu um papel significativo na culinária japonesa. Batatas foram introduzidas, e seu cultivo, especialmente depois de 1888, encorajado.

A dieta japonesa, é claro, não mudou completamente da noite para o dia. Mesmo hoje, passado mais de um século, arroz, missô, algas marinhas, conservas de vegetais, etc. continuam presentes no dia a dia. O fenômeno explica-se, por um lado, pela dificuldade de eliminar costumes antiquíssimos; e, por outro, pela impossibilidade de o Japão produzir muita carne e alimentos de origem animal. O país é pequeno, mas populoso; e quatro quintos de seu território compõem-se de montanhas escarpadas. As reduzidas terras cultiváveis destinam-se à plantação de arroz, feijão e vegetais. Para vacas e ovelhas pastarem nas terras íngremes impróprias para agricultura, necessário era que viessem ao mundo com outra configuração anatômica. Na melhor das hipóteses, uma família de agricultores poderia criar uma vaca, alguns porcos e algumas galinhas. Assim, dado o seu alto custo, a carne era, e continua sendo, um produto quase proibitivo. Houve, todavia, mudanças no estilo japonês de se alimentar; e ao longo do Período Menji essas mudanças continuaram.