segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Desapego, o fundamento da cura

Desapego, o fundamento da cura
Henry Miller


No nosso mundo, os cegos guiam os cegos e os doentes vão aos doentes para se curar. Nós estamos fazendo constantes progressos, mas são progressos que conduzem à mesa de operação, aos albergues, aos manicômios, às trincheiras. Não temos curandeiros – temos só açougueiros cujo conhecimento de anatomia lhes dá direito a um diploma que, por sua vez, lhes dá direito a amputar ou cortar fora as nossas doenças, para que possamos sobreviver como aleijões até a hora de ir para o matadouro. Anunciamos a cura disso e daquilo, mas jamais mencionamos as novas doenças que criamos en route. O culto médico funciona mais ou menos como o ministério da Guerra – os triunfos anunciados são camuflagem para esconder a morte e o desastre. Os médicos, como as autoridades militares, estão indefesos; lutam uma guerra perdida desde o começo.

O homem só precisa de paz para viver. Derrotar nosso vizinho traz tanta paz quanto a cura do câncer traz saúde. O homem não começa a viver por triunfar sobre seu inimigo, como não adquire saúde através de incontáveis curas. A alegria de viver vem através da paz, que não é estática, mas dinâmica. Nenhum homem pode dizer que sabe o que é a alegria antes de ter experimentado a paz.  E sem alegria não há vida, mesmo que você tenha uma dúzia de carros, seis mordomos, um castelo, uma capela privada e um abrigo antiaéreo.

Nossas doenças são nossas ligações, sejam elas hábitos, ideologias, ideais, princípios, posses, fobias, medos, cultos, religiões – o que vocês quiserem. Um bom salário pode ser uma doença igual a um mau salário; o lazer pode ser uma doença tão grave quanto o trabalho. Ao que quer que a gente se apegue, mesmo esperança ou fé, pode ser a doença que vai nos liquidar.

A rendição tem que ser absoluta: se você se agarrar à mínima migalha, estará nutrindo o germe que vai te devorar. Quanto a agarrar-se a Deus, ele nos abandonou há tempos, exatamente para que descobríssemos a alegria de alcançar o Bem através dos nossos próprios esforços. Todo esse barulho que se faz por aí, toda essa súplica insistente pela paz, que vai crescer à medida que a dor e a miséria crescerem, não levará a nada.  Onde encontrar a paz? Será que as pessoas imaginam que a paz é algo que pode ser estocado, como milho ou trigo? É algo que pode ser seguro e devorado, como uma carcaça entre lobos famintos? Ouço as pessoas falarem de paz, e seus semblantes estão carregados de raiva, ou ódio, ou desprezo, ou orgulho e arrogância.

Há pessoas que querem lutar para obter a paz – são as mais enganadas de todas. Não haverá paz enquanto o assassinato não for erradicado do coração e da mente. Tudo aquilo pelo que o homem lutou terá que ser posto de lado antes que possa começar a viver como homem. Até agora não passou de uma besta sanguinária, e mesmo suas divindades não prestam. Tornou-se o mestre de muitos mundos, e no seu próprio mundo é um escravo.

O que comanda o mundo é o coração, não o cérebro. Em todos os campos, nossas pesquisas trazem apenas morte. Voltamos as costas ao único campo onde reina a liberdade. Na quietude, na grande paz que se abateu sobre mim, ouvi bater o coração do mundo.  Sei qual é a cura: é desistir, renunciar, se render, para que os nossos pequenos corações batam em uníssono com o grande coração do mundo.


Um comentário:

  1. Por favor, gostaria de saber a fonte deste texto. Muito bom. Obrigado por compartilhar.
    alexandra trifler

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