terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Os Poderes do Som

Os Poderes do Som




O
s antigos jamais duvidaram dos poderes do som. Representante da tradição sufi, Vilayat Inayat Khan, por exemplo, ensina-nos: “As células dos intricados feixes de nervos que formam os plexos ou gânglios estão sujeitas à influência ininterrupta dos sons.” Enfadonho seria referir aqui todas as tradições que, cientes dos prodigiosos efeitos dos sons, elaboraram verdadeiros tratados práticos sobre o tema. Basta dizer que na Índia e no Tibete, na China e no Japão, na Pérsia e na Sibéria não faltam exemplos desse conhecimento ancestral que, no limite, chegou a postular a seguinte equação: Deus=som.

Li há tempos duas pequenas narrativas que justamente comprovam o poder ilimitado das vibrações sonoras. A primeira consiste na recapitulação por Tomio Kikuchi de um fato excepcional ocorrido no Japão. Com todos os ingredientes de uma história de mistério, sua conclusão é de fato surpreendente. A segunda, de caráter pitoresco (mas nem por isso menos interessante), é, na verdade, o registro de Isabel Allende sobre um episódio vivido pela escritora chilena em sua residência na Califórnia. Como não tenho à mão as narrativas de Kikuchi e Allende, o jeito é recontá-las, cuidando para ser-lhes o mais possível fiel.


O milagre da granja do Sr. Shishima

            Naquele dia, o Sr. Shishima, como de hábito, despertou com a aurora e seguiu para o galinheiro. No recolher dos ovos postos durante a madrugada, estupeficou-se: todas as galinhas, sem exceção, haviam colaborado com um ovo. O Sr. Shishima estava diante de um acontecimento extraordinário. Nunca ninguém havia testemunhado tal prodígio ou mesmo dele ouvido falar. Mas no dia seguinte, o mesmo fenômeno se repetiu, e assim também nos dias que se sucederam.

Intrigado, o criador solicitou os serviços de técnicos em galinicultura da cidade mais próxima. Os técnicos perguntaram-lhe se havia misturado alguma substância à comida das galinhas; mas o Sr. Shishima, um tradicionalista, garantiu-lhes que não. Embora as investigações se aprofundassem ao longo de vários dias, nada foi descoberto. Entre a curiosidade e a preocupação crescentes, o avicultor japonês recorreu aos conhecimentos de um reputadíssimo especialista da capital. Incansável em suas averiguações, e dotado de um raro poder de dedução, o especialista desvendou então o mistério.

O Sr. Shishima, desejoso de melhor aproveitar o terreno que herdara, decidiu plantar variados tipos de hortaliças. Para tanto, foi necessário mudar o curso do córrego que atravessava a propriedade. Valetas foram construídas, e a água, que antes fluía distante do galinheiro, passou a correr-lhe próximo. O grugulejar da água passando pela valeta – foi o que concluiu o especialista – fez que as galinhas botassem todos os dias sem falhar. Aquela vibração sonora, percorrendo os dédalos da estrutura animal, estimulou a circulação hormonal e a sensibilidade nervosa das galinhas. O organismo das aves, incluindo evidentemente seu sistema reprodutivo, passou a adotar um outro ritmo de funcionamento.

Era apenas um som, mas era como se fosse um Deus realizando milagres.

Método infalível para livrar-se de visitas indesejáveis

           O mau cheiro impregnara a confortável casa de Isabel Allende na Califórnia. A escritora já havia inspecionado os quartos, a sala, a cozinha, os banheiros – e nada encontrara. Só restava o sótão. À medida que Isabel vencia os degraus – seu olfato que o diga – o cheiro se tornava mais insuportável. À porta, torturada embora pelo fartum, encontrou ainda forças para adentrar o pavimento. Simplesmente não acreditou no que viu: um casal de gambás – sem consultar, é claro, a proprietária – decidiu fazer daquele lugar seu ninho de amores.

Isabel não pensou duas vezes. Com os pulmões envenenados, desabou pela escada, pegou do telefone e discou para a Sociedade Protetora dos Animais. Após um quarto de hora, o funcionário chegou como se preparado para guerra estivesse. Subiu até a trincheira e de lá só saiu com os gambás feitos prisioneiros.

Mas a ofensiva do bom do funcionário de pouco adiantou. Após serem soltos, os marsupiais não se deram por ofendidos e retornaram ao lugar para o qual acreditavam ter nascido: o sótão da casa de Isabel Allende.

E a história se repetiu várias vezes. Isabel pedia ajuda, o funcionário fazia a sua parte, e os gambás a deles, ou seja, retornavam ao paraíso do sótão.

Certo dia, o enteado de Isabel, um rapazola maníaco por rock pauleira, afiançou-lhe que tinha a solução para o caso. Disposta a tudo, a madrasta deu carta branca ao mancebo.

Dias depois, o enteado retornou com sua potente aparelhagem de som e instalou-a no sótão. Tirou da capa um LP do Led Zeppelin, posou-o no toca-discos, deixou a agulha deslizar sobre ele. Com o volume no máximo, a voz de Robert Plant rasgou o ar explodindo nos tímpanos dos invasores. O paraíso dos gambás estremecia, querendo vir à baixo. Os animais, assustadíssimos, bateram em retirada.


Quando a guitarra de Jimmy Page abriu furiosa a segunda faixa, os gambás já se encontravam refugiados na quinta mais próxima – certos de que jamais voltariam.

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