sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Como o Alimento nos Cria


Como o Alimento nos Cria
Michio Kushi

N
o processo da nutrição, nós fragmentamos o alimento de várias formas. Na verdade, essa fragmentação inicia-se com o ato de cozer, que amacia a textura rija dos alimentos crus e os torna mais digeríveis. O fenômeno continua com a ação mecânica da mastigação e com a ação eletroquímica da enzima ptialina, presente na saliva e responsável pela digestão dos amidos. Quando o alimento chega ao estômago, é ele então dissolvido por fortes ácidos e pela enzima pepsina, que digere as proteínas. Ao introduzir-se no duodeno, região entre o estômago e o intestino delgado, o alimento é banhado pela bile e pelos fluidos digestivos pancreáticos. A bile age sobre as gorduras, dissolvendo-as em partículas menores a fim de que sejam mais facilmente digeridas; e as enzimas pancreáticas agem tanto sobre as proteínas e carboidratos quanto sobre as gorduras.
Neste ponto, poderia um fisiologista considerar o alimento como estando ainda fora de nós. Embora no interior de nosso corpo, não foi ele ainda incorporado à nossa química pessoal, e, portanto, não difere do alimento pinçado por nossos dedos ou em contato com nossa pele. (Mas há exceções: algumas substâncias extremamente yin, tais como álcool, açúcar refinado e especiarias, são em geral absorvidas pela mucosa da boca e do estômago antes deste ponto.) Só depois que o alimento se introduz no trato intestinal é que ele ganha de fato o caminho para tornar-se parte de nós.
No intestino delgado, o alimento digerido entra em contato com as vilosidades intestinais – protuberâncias diminutas e porosas que permitem que os produtos finais da digestão passem através da parede intestinal e entrem na corrente sanguínea. Esse ingresso é preparado e auxiliado por milhões de micro-organismos – bactérias, leveduras e outras formas primitivas de vida – que povoam o intestino, pode-se dizer, com essa finalidade. Esta flora intestinal é semelhante aos micro-organismos relacionados a infecções; mas, enquanto esses últimos decompõem os excessos que devem ser expulsos do corpo, aquela decompõem nutrientes que devem ser introduzidos no corpo.
Uma vez absorvido, o alimento viaja pela corrente sanguínea. O sangue recém-enriquecido passa primeiro pelo fígado, onde é, por vários meios, avaliado e alterado quimicamente. Sua composição é assim ajustada tendo em vista satisfazer as necessidades do corpo em dado momento. Por exemplo, o açúcar desnecessário é estocado ou redirecionado para tornar-se triglicerídeo, combinação especial de gordura encontrada em humanos e animais. Aminoácidos livres podem combinar-se e formar novas proteínas completas, com o objetivo de ajudar, quando necessário, na reconstrução de estruturas corporais. Em sequência, o sangue assim regulado quimicamente é transportado para o coração e pulmões a fim de adquirir oxigênio e pressão física para circular por todo o corpo. Durante o curso da circulação, os rins, o pâncreas e outras glândulas endócrinas ajustam constantemente a composição do sangue, visando a satisfazer com precisão nossas necessidades.
 Finalmente, o sangue passa por vasos finíssimos, os capilares, para então entrar em contato com cada célula do nosso corpo. Neste nível celular os nutrientes dos alimentos alcançam sua destinação final. Energias concentradas no alimento são liberadas e utilizadas em certas atividades. Substâncias são usadas para criar novos tecidos e reparar ou refazer os tecidos velhos, mortos ou destruídos. Aqui o alimento, definitivamente, torna-se nós – nossa substância, nossa energia, nossa atividade. Nosso alimento é decomposto a partir da estrutura original de plantas, animais e outras manifestações do meio ambiente, é reduzido à sua essência microscópica, e depois, miraculosamente, recomposto numa forma inteiramente nova – nós próprios.
Mas não são apenas as calorias e proteínas que nos são fornecidas pelos alimentos. Há também qualidades menos óbvias, não mensuráveis, que se transferem para nossas células. E essas diferenças qualitativas mais sutis entre os diversos alimentos afetam profundamente nosso metabolismo, nosso comportamento e até mesmo nosso pensamento.  Por exemplo, podemos obter 500 calorias consumindo certa porção ou de cenoura, ou de açúcar, ou de álcool. Considerando tão somente o aspecto quantitativo, os três fornecem equivalente energia. Não obstante, experimentamos essas 500 calorias de maneira profundamente distinta.
Em virtude de suas naturezas distintas, cada um daqueles alimentos será metabolizado de maneira radicalmente diferente, e, portanto, produzirá tendências comportamentais completamente particulares. Valendo-nos de outro exemplo: podemos obter a quantidade diária recomendada de proteína quer exclusivamente de fontes animais, quer exclusivamente de fontes vegetais. O total de proteínas em gramas é idêntico; mas, como a maioria dos vegetarianos o sabe, cada grupo desses alimentos produz uma experiência bastante diferente.
Somos, literalmente, o que comemos. Ou mais precisamente: somos um reflexo rigoroso do meio ambiente em que vivemos, visto que o “eu exterior” – a Natureza – é transferido para o “eu interior” por meio do processo de nutrição.


Nenhum comentário:

Postar um comentário