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urante
a Segunda Guerra Mundial, atuava meu pai, Antonio Stanchich, na Marinha
Mercante Italiana. Em 1943, com a rendição da Itália, cruzando seu navio os
mares da Grécia, toda a tripulação de trinta e duas pessoas foi capturada pelos
nazistas e enviada a um campo de concentração na Alemanha. Contígua ao campo de
concentração havia uma fábrica onde todos os prisioneiros eram forçados a
executar trabalhos fisicamente extenuantes.
Os
invernos eram rigorosos; as instalações, insuficientemente aquecidas; as
roupas, inadequadas; a alimentação, escassa. Contou-me meu pai que, embora o frio o
poupasse em certos momentos, a fome, essa não o abandonava jamais.
Pela
manhã, os prisioneiros recebiam uma xícara de café de chicória e uma fatia de
pão. No almoço e no jantar, uma tigela de sopa era tudo o que conseguiam. Submergido
na sopa, feita basicamente de batata, encontrava-se ocasionalmente um pequeno
pedaço de carne. Presos morriam de fome todos os dias. Durante os meses de
inverno, mortes em decorrência da exposição às baixas temperaturas aumentavam
consideravelmente. A vida no campo de concentração resumia-se, enfim, a uma
constante luta pela sobrevivência.
Em
tais condições, fez meu pai uma descoberta que lhe salvaria a vida. Uma vez,
sedento, reteve intuitivamente a água fria na boca mastigando-a por um tempo. A
temperatura da água se elevou e ele enfim a engoliu. Habituou-se, então, a mastigar a água 10 ou 15
vezes. Um dia, porém, estando a água muito fria, ele a mastigou 50 vezes!
Pareceu
a meu pai que a água submetida a tal operação, afora matar-lhe a sede,
proporcionava-lhe também energia. A princípio, julgou ser o fenômeno produto da
sua imaginação. Entretanto, após repetir o processo seguidas vezes, só lhe
restou concluir que mastigar a água 50 ou mais vezes resultava, efetivamente, em
mais energia para o seu organismo. Tal possibilidade desconcertou-o: como
poderia dar-lhe energia algo tão banal como uma pouca de água? Quarenta anos
mais tarde, o mistério foi revelado.
Movido
tanto pelo entusiasmo quanto pela curiosidade, o Sr. Stanchich ampliou suas
experiências. Ele começou a mastigar cada bocado de alimento 50 vezes; depois 75;
depois 100, 150, 200, chegando mesmo a 300 vezes cada bocado e às vezes mais. Concluiu
então que o número mágico de mastigadas era 150, pois, embora pudesse mastigar
quase indefinidamente, a partir dessa marca o aumento de energia se
estabilizava.
A
técnica desenvolvida por meu pai não podia ser mais simples: pôr uma colher de
sopa de líquido ou sólido na boca, mastigar e contar as mastigadas. Ele comunicou
sua descoberta aos companheiros; mas quase todos reagiram da mesma forma: “Ora,
Tony, isso é coisa da sua imaginação!” No entanto, dois entre eles juntaram-se
a meu pai em suas sessões de mastigação e passaram a dividir suas impressões. Reconheceram
afinal que a técnica da mastigação proporcionava-lhes mais energia. Eles
sentiam menos fome e menos frio.
Dois
anos depois, em 1945, as Forças Aliadas alcançaram o campo de concentração e
libertaram os prisioneiros. Meu pai, passados alguns meses, assomou à porta de
nossa casa em Fiume-Rijeka, cidade então pertencente à Itália. Pele e osso,
fantasma humano diante de nossos olhos incrédulos e embaçados, nosso querido
pai, sabe Deus como, sobrevivera!
Dos
trinta e dois tripulantes capturados pelos alemães e levados ao campo de
concentração, somente três sobreviveram: meu
pai e os dois que se dispuseram a praticar a mastigação consciente.
No
ano seguinte, em 1946, durante um grande piquenique da família, meu pai
compartilhou comigo sua experiência do campo de concentração. Ele atribuiu à
sua técnica de mastigação o fato de ter sobrevivido. Terminado o relato,
aconselhou-me: “Filho, quando se sentir debilitado, doente, ameaçado pelo frio
ou pela fome, mastigue cada bocado no mínimo 150 vezes.” Eu tinha apenas 14
anos. Havia víveres suficientes em nossa casa e eu me encontrava saudável.
Aquelas palavras, no entanto, ficaram gravadas na minha mente.
Em
1949, a então Iugoslávia viveu momentos de turbulência política e o governo
comunista proibiu que cidadãos italianos viajassem para Itália. Muitos que se
opunham ao governo tentaram escapar do país. Em 10 de março daquele ano, tentei
eu próprio atravessar a fronteira. Mas fui capturado e condenado a dois anos de
trabalhos forçados.
Embora
não tão abominável quanto um campo de concentração, a prisão a que fui recolhido
tinha lá seu regime desumano e extremamente ameaçador. A dieta era similar a
que meu pai fora submetido no campo de concentração: café de chicória e um
pedaço de pão no desjejum; uma tigela de sopa, geralmente com cevada e feijão,
no almoço e no jantar. Uma vez por semana, um pedaço de carne dava o ar de sua
graça. Eu exultava quando a sopa incluía 20 grãos de feijão. Na verdade, eu
vivia faminto a maior parte do tempo.
Mas
a permissão de receber uma vez por mês um pequeno pacote postado por minha
família, fez toda a diferença. Como os pacotes nunca chegavam, pedi à minha mãe
que me enviasse cebolas, sal marinho e torradas de pão de trigo integral – artigos
que não despertavam a cobiça dos guardas.
Esta
suplementação, comparada à privação por que passou meu pai, equivalia a uma
bênção dos deuses. Eu podia cortar a cebola em fatias, mergulhá-las no sal
marinho e mastigá-las com um pedaço de torrada integral. Seguido por um ou dois
copos de água, esse pasto satisfazia-me completamente. Muito bem mastigado, ele
produzia uma grande energia e um estranho sentimento de confiança e coragem. Eu
simplesmente não temia nada nem ninguém. Pobre de mim: mal sabia que todo esse
atrevimento não era senão efeito do excesso de sal...
Na
época, eu não tinha consciência do quão poderoso − e perigoso! − é o sal. O sal
tornou-me inacreditavelmente agressivo. Na verdade, estupidamente agressivo. Criei
confusão e fui obrigado a permanecer na solitária, completamente nu, durante
dez dias. Mortes por hipotermia eram comuns. Mas eu sobrevivi. Sobrevivi graças
ao conselho de meu pai.
Eu
mastigava de acordo com as suas instruções, ou seja, no mínimo 150 vezes cada
bocado. Mas introduzi uma variante: eu mastigava de olhos fechados. Os resultados
foram excelentes. Eu conseguia anular a
influência daquele meio deprimente. Além disso, fechar os olhos internalizava a
energia. Não observar o mundo exterior punha a energia a serviço exclusivamente
do mundo interno, fortalecendo-me ainda mais.
Minha
experiência na prisão afetou-me profundamente. Eu era um jovem alegre e afável.
Tornei-me um homem ríspido e amargo. Quando tornei a casa em 1951, aparentando
muito mais do que meus 19 anos, ouvi de meu irmão esta troça: “Se eu o visse
numa estrada escura, eu lhe daria minha carteira de dinheiro antes que você ma
pedisse.”
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