domingo, 28 de fevereiro de 2016

O Encontro de John Cage com Tomio Kikuchi

O Encontro de John Cage com Tomio Kikuchi





Para os que são músicos profissionais, o nome de John Cage não soa indiferente. Já para os que não são...

A obra de John Cage distingue-se como uma maneira radicalmente nova de pensar a música. Músico, anarquista, filósofo, poeta, cozinheiro macrobiótico, agricultor com um pendor todo especial para cultivar cogumelos, Cage, no final dos anos 1940, iniciou o treinamento Zen sob a tutela do Sensei Daisetz Suzuki, fato que mudou profundamente não só sua carreira artística, mas também sua trajetória pessoal. Seu contato com a sabedoria oriental resultou num verdadeiro torvelinho de ideias que marcaram para sempre o ato de criar e executar música. Utilizando o I Ching, Cage verificou que era plenamente possível compor eliminando qualquer vestígio de subjetividade pessoal. A contribuição do Zen-Budismo não foi menor: Cage compreendeu que tanto a música quanto o silêncio absolutos não existem. Há silêncio na música como há música no silêncio. A obra de Cage rompe definitivamente com qualquer hierarquia entre música, ruído e silêncio. A partitura de 4'33", sua composição mais famosa, consiste em três movimentos em que o músico não deve executar nenhuma nota em seu instrumento. Após a entrada no palco e os aplausos de praxe, deve ele colocar-se em posição de execução e permanecer assim durante toda a duração da obra (quatro minutos e trinta e três segundos). Muitos poderiam concluir que estamos diante de um expediente artístico para fazer brotar, solitário, o silêncio. Mas o objetivo real está alhures. O que de fato acontece é que cada espectador se torna o palco de uma experiência libertadora. Aos poucos, toda espécie de som   ̶ mesmo os mais impertinentes (mas próprios da vida cotidiana)   ̶ vai ganhando terreno nesse ambiente pretensamente sagrado que é a sala de concertos: ouvimos nossa própria pulsação cardíaca, a respiração penosa do ancião ao lado, os pigarros da audiência, a buzina dos carros que passam nervosos na rua em frente... “Sentia e esperava – profetizava Cage – poder conduzir as pessoas à conscientização de que os sons do ambiente onde elas vivem representam uma música muito mais interessante do que aquela que poderiam escutar num concerto".


Em 1985, convidado pela Bienal de São Paulo, John Cage aportou pela última vez nestas plagas. Macrobiótico de carteirinha, perscrutou seus anfitriões sobre a existência de restaurantes que lhe pudessem proporcionar o equilibrado repasto. Um dos confrades lembrou-se do parente macrobiótico que frequentava amiúde certo restaurante na Liberdade. Tratava-se, é claro, do Restaurante Satori, do Prof. Tomio Kikuchi. No dia seguinte, acotovelaram-se todos num fusquinha e partiram para o bairro japonês. Já nas dependências do Restaurante Satori, o tal do macrobiótico apresentou Cage a Kikuchi:

̶ Professor, este é John Cage, o maior compositor vivo do planeta!
 
Kikuchi mirou os olhos de Cage e disparou:

̶ O senhor sabe cortar bardana?

̶ É claro que sei!

̶ Pois venha comigo...  

E lá foram os dois, cozinha adentro, cortar as raízes de bardana. Kikuchi não falava inglês, Cage não falava português. Sabe-se lá o que se passou na cabeça desses dois homens durante a meia hora em que juntos se entretiveram cortando bardanas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário