sábado, 28 de dezembro de 2013

Das Dificuldades Surgem as Facilidades

Das Dificuldades Surgem as Facilidades
O Caso de Mozart
Gustavo Corção



F
oi duríssima a vida de Mozart. Com exceção de poucos momentos, viveu sempre entre homens de espantosa mediocridade. Apaixonou-se por Aloísia Weber mas casou-se com a irmã, Constância, como o pastor de Labão. De sete filhos perdeu cinco. Passou fome. Foi meticulosamente humilhado. Como porém não soltou rugidos ou gemidos românticos, contentando-se às vezes em dizer  “Cosi fan tutti”, nós deixamos pensar que sua vida foi amena, ou até leve e translúcida como sua música.

Foi entretanto difícil, dificílima, mas dentro dessa dificuldade, cercado de credores, sitiado pelos tolos, acuado, faminto e tuberculoso, Mozart possuiu, ou adquiriu, ou desenvolveu a mais estranha, a mais misteriosa facilidade de compor que já se viu. Escrevia a qualquer hora, em qualquer lugar, a despeito de quaisquer circunstâncias. Cabeceando de sono, alta noite ou mal acordado de manhã, sem almoçar ou recostado na cama depois do almoço, com vagar ou com pressa, com disposição ou com febre, Mozart escrevia. Escrevia no meio da casa, ouvindo Constância contar os episódios do dia! Compunha uma abertura meia hora antes do primeiro concerto, e os músicos recebem as partituras com tinta ainda fresca. Atendia a encomendas. Fazia música italiana para os italianos e alemã para os alemães, mas sempre música de Mozart. Nenhuma das exigências pitorescas, que alimentam o anedotário dos artistas famosos, se encontra no ofício de Mozart. Não trazia maçãs guardadas na gaveta como Schiller, não espalhava peças de seda no chão como Wagner, nem gritava por quem lhes despejasse água na cabeça ardente como Beethoven. Trabalhava como qualquer modesto artífice. Sentava-se e escrevia. Compunha como o padeiro amassa o pão, ou como o lavrador empurra o arado. De tal modo viva mergulhado na música, fundido nela, que até chegava a parecer desatento. Sem calmantes ou excitantes sua composição flui como se o seu coração vivesse a se desintegrar em música. E é por isso, creio eu, por causa desse paradoxo de uma vida de espessas dificuldades a se transfigurar em música translúcida, por causa dessa total transposição de alma no objeto de sua arte, por causa, em suma, da integração ininterrupta capaz de tão maravilhosa espontaneidade, é por isso que hoje, ouvindo quatro compassos, sentimos logo a presença total e inconfundível da alma imensa que há duzentos anos vem crescendo como um sonoro universo em expansão.

Foi curta a vida de Mozart. Morreu tuberculoso, aos trinta e poucos anos, enquanto arrematava o Requiem que lhe encomendara um personagem enigmático. Morreu na miséria e no abandono. Chovia muito no dia de seu enterro. O coche chegou sem acompanhamento no cemitério, e o corpo de Wolfgang Amadeu Mozart foi atirado na vala comum.


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