Das
Dificuldades Surgem as Facilidades
O Caso de
Mozart
Gustavo Corção
F
|
oi
duríssima a vida de Mozart. Com exceção de poucos momentos, viveu sempre entre
homens de espantosa mediocridade. Apaixonou-se por Aloísia Weber mas casou-se
com a irmã, Constância, como o pastor de Labão. De sete filhos perdeu cinco.
Passou fome. Foi meticulosamente humilhado. Como porém não soltou rugidos ou
gemidos românticos, contentando-se às vezes em dizer “Cosi fan tutti”, nós deixamos pensar que sua
vida foi amena, ou até leve e translúcida como sua música.
Foi entretanto
difícil, dificílima, mas dentro dessa
dificuldade, cercado de credores, sitiado pelos tolos, acuado, faminto e
tuberculoso, Mozart possuiu, ou adquiriu, ou desenvolveu a mais estranha, a mais misteriosa facilidade de compor que
já se viu. Escrevia a qualquer hora, em qualquer lugar, a despeito de
quaisquer circunstâncias. Cabeceando de sono, alta noite ou mal acordado de
manhã, sem almoçar ou recostado na cama depois do almoço, com vagar ou com
pressa, com disposição ou com febre, Mozart escrevia. Escrevia no meio da casa,
ouvindo Constância contar os episódios do dia! Compunha uma abertura meia hora
antes do primeiro concerto, e os músicos recebem as partituras com tinta ainda fresca.
Atendia a encomendas. Fazia música italiana para os italianos e alemã para os
alemães, mas sempre música de Mozart. Nenhuma das exigências pitorescas, que
alimentam o anedotário dos artistas famosos, se encontra no ofício de Mozart.
Não trazia maçãs guardadas na gaveta como Schiller, não espalhava peças de seda
no chão como Wagner, nem gritava por quem lhes despejasse água na cabeça
ardente como Beethoven. Trabalhava como qualquer modesto artífice. Sentava-se e
escrevia. Compunha como o padeiro amassa o pão, ou como o lavrador empurra o
arado. De tal modo viva mergulhado na música, fundido nela, que até chegava a
parecer desatento. Sem calmantes ou excitantes sua composição flui como se o
seu coração vivesse a se desintegrar em música. E é por isso, creio eu, por
causa desse paradoxo de uma vida de
espessas dificuldades a se transfigurar em música translúcida, por causa
dessa total transposição de alma no objeto de sua arte, por causa, em suma, da
integração ininterrupta capaz de tão maravilhosa espontaneidade, é por isso que
hoje, ouvindo quatro compassos, sentimos logo a presença total e inconfundível
da alma imensa que há duzentos anos vem crescendo como um sonoro universo em
expansão.
Foi curta a vida
de Mozart. Morreu tuberculoso, aos trinta e poucos anos, enquanto arrematava o Requiem que lhe encomendara um
personagem enigmático. Morreu na miséria e no abandono. Chovia muito no dia de
seu enterro. O coche chegou sem acompanhamento no cemitério, e o corpo de
Wolfgang Amadeu Mozart foi atirado na vala comum.
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