Quando o homem para de
pulsar
Regina
Schöpke
O
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psiquiatra e psicanalista austríaco Wilhelm
Reich (1897- 1957) foi injustamente acusado de muitas coisas, dentre elas, de
ser um utópico que desejava acabar com o desprazer do mundo. Mas Reich, que foi
(segundo pensamos) o discípulo mais genial de Freud, exatamente por ter rompido
com ele e levado ainda mais longe a busca pela compreensão da "doença
humana" (nesse ponto, é preciso concordar com Nietzsche quando ele diz que
o verdadeiro discípulo só faz jus ao seu mestre quando o ultrapassa, quando
joga o dardo mais longe), tinha perfeita consciência de que não há prazer e
alegria de viver "sem lutas, sem experiências dolorosas e embates
desagradáveis consigo mesmo", de modo que sua questão era exatamente o
contrário.
Reich, é claro, queria devolver ao
homem a capacidade perdida (já na infância) de pulsar, de sentir prazer real,
pois sabia bem que a educação tradicional produz um homem que foge tão
continuamente da dor que termina por se "encouraçar" também para as
alegrias, já que uma não existe sem a outra. Então, não se trata de acabar com
as dores do mundo, mas de estar vivo o suficiente para não endurecer. Como diz
Reich, "a capacidade de suportar o desprazer e a dor sem se tornar
amargurado e sem se refugiar na rigidez anda de mãos dadas com a capacidade de
aceitar a felicidade e dar amor".
A doença começa (em todos os sentidos
e em todos os indivíduos) quando o homem para de pulsar, de sentir, de viver
intensamente, isso é ser "encouraçado". Mas Nietzsche diria que esse
é o homem em geral (eis por que era necessário ultrapassá-lo, inventar um novo
homem). Reich, que conhecia bem Nietzsche, e também Bergson (a quem admirava
pela sua ideia da energia vital), reconhecia a extensão da doença humana e, por
isso mesmo, não soava mal para ele a afirmação nietzschiana de que "o
homem é um animal doente". Para Reich, tanto quanto para Nietzsche, esse
adoecimento tem um fundo social e cultural, ou seja, faz parte de um atavismo
milenar que termina por produzir homens fracos, cindidos, impotentes.
É fato que a psicanálise trouxe
inicialmente uma espécie de euforia para os meios intelectuais, ajudando a
derrubar, com o avanço dos estudos acerca do inconsciente, o mito da razão
soberana (já tão atacada por Nietzsche). Mas apesar de Reich concordar com
várias concepções da psicanálise, ele sente que ela permanece numa esfera
demasiado intelectual para dar conta das conexões mais sutis entre o corpo e a
mente, e isso já pode ser sentido mesmo em sua fase psicanalítica, como podemos
observar pela leitura da obra O Caráter Impulsivo.
Percebendo que não se tratava apenas
de buscar a cura (ou a melhora) de psicóticos, neuróticos ou esquizofrênicos,
mas de entender a extensão e as causas da aparente predisposição do homem para
a infelicidade, Reich vai em busca da gênese das neuroses a fim de explicar a
generalização da doença humana, ou seja, esse estado de fraqueza e apatia
mórbidas e socialmente cultivadas, em que os seres humanos, em vez de crescerem
e enfrentarem a vida como adultos, permanecem como crianças, imaturos do ponto de
vista emocional e afetivo (aquilo que Federico Fellini chamou tão bem de
"bezerrões", já que não conseguem parar de "mamar" e de
correr atrás da mamãe). Em certos casos, pode-se dizer que alguns nem
conseguiram sair inteiramente do útero, continuando presos por um cordão
umbilical virtual. Não é sem razão que a humanidade parece estar sempre à
espera de salvadores, mestres e pastores que lhe ensinem a viver; e, num nível
ainda mais corriqueiro e estimulado pela própria sociedade, vemos os homens
buscando na "esposa ideal" o modelo da "mamãe" passiva e
resignada.
E esse é apenas um dos exemplos de
relações adoecidas, pois - como mostra Reich - o resultado de um mau
desenvolvimento da libido e da afetividade termina por gerar distúrbios de toda
a ordem: mulheres que buscam o pai ou mesmo a mãe nas suas relações, homens que
buscam metaforicamente "mulheres de pênis", etc., sem contar as
inúmeras perversões sexuais, transtornos de agressividade e uma moral
compulsiva que acompanham a má formação da libido. Há quem julgue essas ideias
sujas e perversas, mas o que Reich chama de "resignação neurótica"
parece explicar muito melhor o niilismo humano e a falta de coragem para viver
do que o mito maniqueísta da religião. Além do mais, sujo e pervertido é manter
relações falsas e viver traindo a quem se diz amar e respeitar. Antes mesmo de
criar a sua "Análise do caráter" - e, posteriormente, a sua
"Orgonoterapia" -, Reich nos mostra que as pulsões não podem ser
suprimidas, mas apenas sublimadas ou deslocadas, e é por isso que o papel da
educação se torna tão vital.
É verdade que Reich acreditava no
amor e na felicidade, e também numa sexualidade saudável (uma razão a mais para
ser chamado de maluco e pornográfico num mundo tão cheio de perversões e
ódios). Mas ele não era utópico. Ele sabia que a vida é feita de altos e
baixos, de alegrias e tristezas, mas também sabia que aquele que se mantém vivo
e pleno, pulsante e vibrante, será capaz de não endurecer, de não perder o
élan, o vigor, a alegria de viver, até o fim. Para Reich, nada é mais
equivocado, em Freud, do que a idéia da pulsão de morte como uma pulsão
primária. A pulsão de morte é, ao contrário, a própria doença humana, o
niilismo que Nietzsche tanto atacou. Viver é pulsar, é rir e chorar, é sofrer e
ter prazer, e é sobretudo querer estar "aqui" e gozar até o fim o
privilégio de ser, ser consigo mesmo e com os outros, de um modo pleno,
profundo, ativo, real. Ser feliz é viver fora da farsa, da inautêntica
existência que nos transforma em atores de nossa própria vida. Ser feliz é
simplesmente deixar o palco para viver de verdade.
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