domingo, 5 de maio de 2013

Ohsawa em Paris



Ohsawa em Paris:
Criando coelhos na Cidade-Luz
                                                                                     

F
inalmente o trem chegou à estação Gare du Nord em Paris. Estava Ohsawa exultante, completamente entusiasmado com a aventura que se descortinava diante dele. Mas encontrava-se também falto de dinheiro, contando apenas com duzentos francos, quantia suficiente para pagar, se tanto, as despesas de poucas semanas.

Ohsawa logo tratou de alugar a água-furtada de uma típica casa francesa. Não havia janelas no pavimento, mas tão somente uma claraboia. Os caixotes usados para despachar seus livros do Japão para a Europa, Ohsawa os dispôs de modo que lhe servissem de mesa e estante. Sobre a mesa improvisada instalou o retrato da mãe, sua mais poderosa fonte de inspiração. Por toda a vida Ohsawa se recordaria do que lhe dissera ela no leito de morte: “Estude todas as coisas. Jamais se torne um especialista. Dedique sua vida ao bem-estar da nação e de toda a humanidade.” Talvez, neste novo e solitário ambiente, a memória da mãe lhe fosse ainda mais necessária. Ohsawa batizou o lugar de hamaguri (amêijoa), na tentativa de descrever os tons da luz repentina projetada pela claraboia por ocasião da aurora e do crepúsculo.

Já instalado, Ohsawa passou a considerar qual a melhor forma de alcançar seus objetivos. Viera à Europa não só para ensinar, mas também para aprender. Seu plano era confrontar a ciência ocidental com a tradição oriental representada pela Shoku-Yō, demonstrando a superioridade desta última. Na verdade, tencionava ele introduzir no Ocidente a essência da cultura japonesa, o Yamato-damashii, e as várias artes e disciplinas dela decorrentes. Mas desejava também estudar a fundo o Ocidente. Queria compreender de fato a ciência, a filosofia e a religião ocidentais, e sentir como o homem do Ocidente experimentava o mundo.

Dados os propósitos de Ohsawa, Paris apresentou-se-lhe como destino natural. Desempenhava a cidade à época o papel de capital cultural do Ocidente. Na arte e literatura, na ciência e medicina, a Cidade-Luz inspirava seus gênios nativos e atraía as principais personalidades estrangeiras. Franceses como Paul Valéry e André Malraux, e expatriados como Ernest Hemingway, Gertrude Stein e James Joyce elevaram-na à Meca dos escritores e poetas. Com grandes espíritos científicos reunidos, e por conta dos trabalhos desenvolvidos em lugares como o Instituto Pasteur, Paris era também centro de importantes pesquisas médico-científicas. E a cidade exercia ainda a função de eixo do poder político. Era o centro de um vasto (e ainda vital) império mundial, com colônias no sudeste da Ásia e por toda a África.

Além disso, Paris se tornara a sede de estudos sobre a cultura e história da Ásia, desenvolvidos por intelectuais e artistas. Importantes pesquisas acadêmicas desenrolavam-se já há algum tempo, com textos indianos e chineses estando disponíveis desde a primeira metade do século XIX.  Os idiomas e as escrituras do Budismo, a literatura e a ciência da China e, desde a queda da política de isolamento, a arte e a cultura do Japão vinham sendo rigorosa e sistematicamente examinados. A estética japonesa havia provocado um forte impacto no desenvolvimento da arte moderna na França. Na década de oitenta do século XIX, as primeiras xilogravuras importadas da Japão inspiraram o estilo cloisonné de Vicent van Gogh, e nos anos vinte do século passado, a pintura e outras artes japonesas ainda permaneciam em voga. Paris, portanto, era o lugar ideal para Ohsawa apresentar ao Ocidente a cultura oriental autêntica e, por outro lado, alcançar um entendimento profundo do Ocidente.

Os primeiros meses foram penosos para Ohsawa. Ele escrevia artigos sobre cultura japonesa e, cruzando a pé a cidade (para poupar algum níquel), oferecia-os a editores. Não havia, porém, quem os comprasse. A minguada quantia de que dispunha permitia-lhe comprar apenas uma mistura de painço e grãos triturados vendida como ração de pássaros em loja de produtos para animais. A essa mistura ele acrescentava verduras que colhia nos parques públicos. Aos sábados, deslocava-se para as cercanias em busca de vegetais selvagens e caracóis, uma iguaria para os franceses. E tudo era preparado num único bico de gás que instalara no seu hamaguri.

 Certa noite, a caminho de casa, Ohsawa percebeu nos fundos de um mercado uma pilha de produtos amassados e despedaçados que haviam sido varridos como lixo. Havia cenouras, folhas de beterraba, repolhos, etc. Ele se agachou e arrastou para dentro da valise os vegetais que nela couberam. De regresso a casa, cozinhou alguns para o jantar e pendurou os restantes numa corda dentro do quarto para desidratarem. Os fundos do mercado tornou-se-lhe, então, uma parada obrigatória durante o trajeto de volta a casa.

Um dia, rapazotes surgiram e puseram-se a encher um carrinho de mão com os vegetais lançados fora com o fito de alimentar seus coelhos. Ficaram chocados ao verem um distinto cavalheiro oriental apinhando sua pasta com folhas de rabanete. “Quantos coelhos o senhor tem em casa?”, perguntaram-lhe. Constrangido, Ohsawa respondeu: “Oh, apenas um, mas ele é enorme.” Tal expediente só atiçou a curiosidade dos rapazes, que rogaram a Ohsawa que os levasse para ver o prodígio. Com muita dificuldade conseguiu Ohsawa demovê-los da ideia.

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