terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

SAL(I)VAÇÃO


SAL(I)VAÇÃO




             “Mesmo aquele que tem dentes falhos deve mastigar demoradamente, porque o fim principal do processo é o ensalivamento, que se obtém por meio de uma longa retenção e movimentação do alimento na boca.” 

             Graças a esta advertência do Professor Huberto Rohden é que me dei conta de que a mastigação encerra dois aspectos opostos: a trituração, aspecto aparente, complementar e mecânico; e a insalivação, aspecto oculto, principal e químico. 

               Subdividindo o alimento em partículas cada vez menores, a trituração abre terreno para que a saliva lhe trabalhe quimicamente regiões a princípio inatingíveis. Não faltou quem comparasse os resultados da mastigação diligente à alquimia própria da dinamização homeopática. É como se o fenômeno, protagonizado pela insalivação, liberasse e potencializasse as energias vitais – e terapêuticas – presentes nos alimentos. 

            Mas há também quem atribua à mastigação virtudes ainda mais impressionantes. Este é o caso, por exemplo, do terapeuta Lino Stanchich, que vê no mastigar consciente um capítulo à parte das transmutações biológicas:

          “Em minha opinião, quando mastigamos no mínimo 150 vezes cada bocado, os alimentos transmutam-se em qualquer elemento de que nosso corpo necessite. Nossa boca é como um reator nuclear capaz de mudar um elemento em outro. Através da prática consciente da mastigação, nós podemos transformar um elemento químico ou hormônio em outro necessário para as células e órgãos de nosso corpo. Sei que para muitos isso soa fantasioso, mas tudo que afirmo é fruto de minha própria experiência.” 

              E que experiência! Lino nos conta como aprendeu com seu pai uma lição inesquecível:

           “Mastigar bem salvou minha vida. Aprendi sobre essa simples mas profunda prática com meu pai. Meu pai sobreviveu a dois anos de grandes privações num campo de concentração nazista na II Grande Guerra Mundial. Sob condições assustadoras de frio e fome, ele descobriu que quanto mais mastigasse seu escasso alimento, e mesmo a pouca água que lhe forneciam, o resultado era mais energia, mais calor e mais resistência, o que só aumentou sua esperança e coragem. 

        Quando, depois da guerra, meu lar foi reconstruído, meu pai dividiu conosco aquela experiência: ‘Se vocês, por qualquer motivo, sentirem-se fracos, doentes, temerosos, desesperançados, mastiguem seu alimento 150 vezes ou mais. ’ Naquele tempo havia paz e fartura. Mas logo depois – contava eu então 17 anos – fui preso por motivos políticos e enviado a um campo comunista de trabalhos forçados na Iugoslávia. Ali, à semelhança de meu pai, experimentei a fome, o frio e o sofrimento. Mas seus ensinamentos sobre mastigação fizeram com que eu não só sobrevivesse, como desenvolvesse também uma grande força espiritual e mental que carrego para o resto de minha vida.” 

              A história de Lino Stanchich lembrou-me, por contraste, a de um ladrão cuja única desgraça foi não ter insalivado o suficiente. A saga do gatuno encontrei-a num obscuro texto de Honoré de Balzac, autor da vertiginosa obra A Comédia Humana. Para alívio e regozijo dos leitores, não me atreverei a recontá-la, deixando-os, como convém, na companhia do próprio Honoré:

           “Numa fragata do Rei, antes da revolução, em pleno mar, cometeu-se um roubo. O culpado estava necessariamente a bordo. Apesar dos mais severos interrogatórios, apesar do hábito de observar os menores detalhes da vida em comum que se leva num barco, nem os oficiais nem os marinheiros puderam descobrir o autor do roubo. Esse fato se tornou a ocupação de toda a tripulação. Quando o capitão e seu estado-maior estavam desesperados por fazer justiça, o contramestre disse ao comandante:

             - Amanhã de manhã eu encontrarei o ladrão.

               Grande espanto.

           No dia seguinte, o contramestre faz a tripulação reunir-se no castelo para anunciar que ia encontrar o culpado. Ordena a cada homem que estenda a mão, e distribui-lhe uma pequena quantidade de farinha. Passa-os em revista mandando que cada homem faça uma bolinha com a farinha em mistura com a saliva. E um homem não consegue fazer sua bolinha por falta de saliva. 

              - Eis o culpado – diz ele ao capitão. 

              O contramestre não estava enganado.” 

             Todo chefe de polícia sabe que ao homem exposto a situações de extremo nervosismo lhe falta a faculdade imprescindível de insalivar. E, para todos os efeitos, não há notícia de carrascos que tenham visto sentenciados cuspirem no patíbulo. 

           Que conclusão tirar dos relatos que acabamos de ler? Eu, de minha parte, extraio a seguinte: SE A PRESENÇA DA SALIVA NOS SALVA, SUA AUSÊNCIA, AO CONTRÁRIO, NOS CONDENA.

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