quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

A fragilidade terrena e sua causa principal


A fragilidade terrena
e sua causa principal
Friedrich Nietzsche*
                                                     
O
lhando em torno, sempre deparamos com pessoas que durante a vida inteira comeram ovos e não notaram que os de forma alongada são os mais saborosos, que não sabem que uma tempestade é benéfica para o ventre, que odores agradáveis são mais fortes no ar frio e claro, que o nosso olfato não é o mesmo nas diferentes partes da boca, que toda refeição em que se fala ou se ouve muito é prejudicial ao estômago. Ainda que esses exemplos da falta de sentido de observação não satisfaçam, deve-se admitir que as pessoas veem mal e raramente atentam às coisas mais próximas possíveis. E isso não tem importância? – Considere-se, porém, que quase todas as enfermidades físicas e psíquicas do indivíduo decorrem dessa falta: de não saber o que nos é benéfico, o que nos é prejudicial, no estabelecimento do modo de vida, na divisão do dia, no tempo e escolha dos relacionamentos, no trabalho e no ócio, no comandar e obedecer, no sentimento pela natureza e pela arte, no comer, dormir e refletir; ser insciente e não ter olhos agudos para as coisas mínimas e mais cotidianas – eis o que torna a Terra um “campo do infortúnio” para tantos. Não se diga que aí, como em tudo, a causa é a desrazão humana – há razão bastante e mais que bastante, isso sim, mas ela é mal direcionada e artificialmente afastada dessas coisas pequenas e mais próximas. Sacerdotes e professores, e a sublime ânsia de domínio dos idealistas de toda a espécie, inculcam já na criança que o que importa é algo bem diferente: a salvação da alma, o serviço do Estado, a promoção da ciência, ou reputação e propriedades, como meios de prestar serviços à humanidade, enquanto seria algo desprezível ou indiferente a necessidade do indivíduo, seus grandes e pequenos requisitos nas vinte e quatro horas do dia. – Já Sócrates se defendia com todas as forças contra essa orgulhosa negligência das coisas humanas em nome do ser humano, e gostava de lembrar, com uma frase de Homero, a área e o conteúdo reais de toda preocupação e reflexão: é aquilo e somente aquilo, dizia ele, “que em casa me sobrevém, de bom e de ruim”.
*O andarilho e sua sombra, na tradução de Paulo César de Souza.

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