Homogeneização
do Alimento
Padronização,
Uniformização e Produção em Massa
Sandor Katz
A
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s culturas espalhadas pelo mundo desenvolveram-se como
fenômenos singulares. Isto é verdadeiro tanto para as culturas humanas quanto
para as culturas microbianas. Fatos culturais como idiomas, crenças e técnicas
culinárias (incluindo a fermentação) são inacreditavelmente diversos. Contudo,
esta diversidade espantosa encontra-se ameaçada pela expansão do comércio num
mercado globalizado. Outrora cerveja, pão e queijo constituíam produtos únicos,
que variavam de local para local. Hoje, ao contrário, nós, consumidores
“privilegiados” do século XXI, podemos comprar produtos fermentados tais como Bud Light, Wonder Bread ou Velveeta*, cuja
aparência e sabor são os mesmos em todos os lugares. O mercado e a produção
em massa exigem uniformidade. O sabor, a individualidade e a cultura locais
foram submetidos a um mínimo denominador comum, pois o McDonald’s, a Coca-Cola e
outras megacorporações penetraram as mentes numa escala global com o objetivo
de criar desejo por seus produtos.
Trata-se, portanto, de homogeneização
da cultura, um processo deplorável e ameaçador por meio do qual idiomas,
tradições orais, crenças e costumes desaparecem a cada ano, enquanto riqueza e
poder cada vez maiores se concentram nas mãos de um grupo muito reduzido.
Oposto da homogeneização e da uniformidade, a fermentação natural é um pequeno
antídoto de que se pode lançar mão na própria residência, utilizando culturas
de micro-organismos extremamente particulares, próprias de cada ambiente
doméstico, para produzir um alimento fermentado único. Aquilo que fermentamos
com micro-organismos à nossa volta constitui a manifestação de um ambiente específico,
e o resultado será sempre inigualável. Seu chucrute ou missô caseiros podem,
perfeitamente, vir a corresponder à imagem ou expectativa que você tem deles. É
mais provável, porém, que eles manifestem alguma singularidade que o forçará a
ajustar sua imagem e expectativa. A fermentação artesanal furta-se, de fato, ao
domínio das mercadorias padronizadas. E, no entanto, as primeiras mercadorias
cambiadas em escala mundial foram os fermentados. Especificamente, chocolate,
café e chá estavam entre os primeiros produtos agrícolas despachados em grandes
quantidades para todas as regiões do planeta. Todos eles, por sinal, envolvem
fermentação em sua fabricação.
Em 1985 passei vários meses viajando
pela África. Na República dos Camarões, não muito distante de uma cidade
chamada Abong-Mbang, fui apresentado
ao casal de pigmeus que me guiaria numa aventura selva adentro. Usamos varas de
bambu para atravessar os pântanos. Os pigmeus desfrutam uma longa tradição de
sobrevivência na selva. Nesta jornada, deparei vários povoados pigmeus
envolvidos com a plantação de cacau. Acabei por saber que o governo tentava
forçá-los a se adaptar à agricultura voltada para o mercado. O estilo de vida
migratório dos pigmeus estava sendo tachado de obsoleto e ilegal, por não gerar
valor para um Estado em busca desesperada por receitas e negócios com o
exterior, tendo em vista os empréstimos contraídos com instituições financeiras
mundiais.
Quando culturas tradicionais são
consideradas fora da lei, podemos afirmar que vivemos um processo de
homogeneização da cultura. É uma velha história, que poderia ser contada por
qualquer indígena americano ou por meus avós judeus, que escaparam dos pogroms**
e viram as tradições judaicas da Europa Oriental se dispersarem e desaparecerem
numa única geração.
*Marcas,
respectivamente, de cerveja, pão e queijo.
**Conjunto de
perseguições e crimes praticados contra os judeus.
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