Fisiologia
e Filosofia
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ríticos há que atribuem à doença a autoria de obras-primas.
Não cheguemos a tanto. Basta-nos reconhecer que distúrbios fisiológicos
influenciaram, e muito, a obra de renomados escritores. Walter Benjamin, por
exemplo, relaciona o ritmo peculiar da sintaxe de Proust à asma de que padecera
o genial romancista francês. Em língua portuguesa, há os casos emblemáticos de
Machado de Assis e Dalton Trevisan. Segundo o acadêmico Evanildo Bechara,
Machado particulariza-se, entre outras coisas, pelo emprego da pontuação
excessiva, ditada ao escritor pela sua significativa miopia. Já Dalton
Trevisan, a darmos crédito a seu ex-pupilo e atual desafeto Miguel Sanchez
Neto, recorreu a narrativas curtíssimas não por questões estéticas, mas em decorrência
dos limites que a artrite lhe impôs.
Contudo, o influxo da doença não se
faz sentir apenas nos domínios do estilo. Às vezes a enfermidade proporciona
aos artistas e filósofos, como se os transportasse de súbito ao cume das
montanhas, a visão de uma paisagem inaudita. Neste caso, a figura de Emil
Cioran se impõe. Não tivesse a insônia feito do pensador romeno seu prisioneiro
dileto, certamente não teria ele formulado as teses pessimistas que o
consagraram. No ensaio Fisiologia e
Filosofia em Emil Cioran, o professor Paulo Jonas de Lima Piva escreve:
Aos vinte anos, Cioran virou um tresnoitado, um imprestável insone.
Cioran eleva então a insônia à condição de fonte filosófica, em última
instância, ao estatuto de categoria filosófica, algo curiosamente singular na
história da filosofia. [...] A seus olhos, a insônia seria um estado orgânico
fundamental para compreender-se a essência, melhor dizendo, a falta de essência
da existência, ou seja, seu vazio metafísico dissimulado pelas inúmeras fés que
atrofiam as consciências. Cioran, a propósito, expressava um certo desprezo –
talvez misturado a uma certa inveja – por aqueles que conseguiam dormir. Em seu
entender, aqueles que dormem sentem o tempo de uma maneira muito diferente da
do insone. Para os indivíduos que conseguem dormir, o tempo é muito mais
simples, brando e mecânico: inicia-se quando acordam, prolonga-se no trabalho e
nas tarefas do cotidiano e finda-se quando dormem, para recomeçar novamente com
um outro despertar e com a repetição dos velhos rituais da rotina. A
experiência reiterada deste ciclo provoca a ilusão de um novo dia, persuade a
consciência de que o tempo renova-se, o que torna a vida de quem dorme uma
fatalidade suportável. Já para o insone a percepção do tempo é radicalmente
distinta. Ele não desfruta da ilusão da descontinuidade que o sono provoca. O
insone sente intensamente que o tempo não tem interrupção, que é
permanentemente contínuo. Portanto, ele não vê nenhuma diferença essencial
entre os segundos e os minutos, entre os dias e as noites. Para o insone, o
tempo nunca passa. E sem a convicção da renovação, sem a ilusão redentora do
ciclo que os relógios fomentam, o tempo revela-se insípido, vazio, absurdo e
sem finalidade, o que torna sua existência desesperadora. [...]
Eis que Cioran descobre o grande segredo a condição humana: o sono. É a
faculdade de dormir que torna a vida humana suportável, pois é ela que nos
impede a consciência de que o tempo é interminável e sem finalidade, e, por
consequência, a consciência de que nossas vidas são efêmeras e gratuitas. No
entender de Cioran, nós dormimos não para descansar, mas sim para esquecer o
tempo, para fecharmos os olhos diante de nossa nulidade metafísica. [...]
Cioran assevera que, se um dia toda a humanidade fosse impedida de dormir, a
história se consumiria rapidamente por meio de carnificinas e de suicídios
coletivos.
Em suma, a insônia foi a maior e mais determinante experiência filosófica
de Cioran, na medida em que lhe revelou o nada de tudo o que existe, respira e
resiste.
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