segunda-feira, 2 de julho de 2012

Fisiologia e Filosofia


Fisiologia e Filosofia


C
ríticos há que atribuem à doença a autoria de obras-primas. Não cheguemos a tanto. Basta-nos reconhecer que distúrbios fisiológicos influenciaram, e muito, a obra de renomados escritores. Walter Benjamin, por exemplo, relaciona o ritmo peculiar da sintaxe de Proust à asma de que padecera o genial romancista francês. Em língua portuguesa, há os casos emblemáticos de Machado de Assis e Dalton Trevisan. Segundo o acadêmico Evanildo Bechara, Machado particulariza-se, entre outras coisas, pelo emprego da pontuação excessiva, ditada ao escritor pela sua significativa miopia. Já Dalton Trevisan, a darmos crédito a seu ex-pupilo e atual desafeto Miguel Sanchez Neto, recorreu a narrativas curtíssimas não por questões estéticas, mas em decorrência dos limites que a artrite lhe impôs.
Contudo, o influxo da doença não se faz sentir apenas nos domínios do estilo. Às vezes a enfermidade proporciona aos artistas e filósofos, como se os transportasse de súbito ao cume das montanhas, a visão de uma paisagem inaudita. Neste caso, a figura de Emil Cioran se impõe. Não tivesse a insônia feito do pensador romeno seu prisioneiro dileto, certamente não teria ele formulado as teses pessimistas que o consagraram. No ensaio Fisiologia e Filosofia em Emil Cioran, o professor Paulo Jonas de Lima Piva escreve:
Aos vinte anos, Cioran virou um tresnoitado, um imprestável insone. Cioran eleva então a insônia à condição de fonte filosófica, em última instância, ao estatuto de categoria filosófica, algo curiosamente singular na história da filosofia. [...] A seus olhos, a insônia seria um estado orgânico fundamental para compreender-se a essência, melhor dizendo, a falta de essência da existência, ou seja, seu vazio metafísico dissimulado pelas inúmeras fés que atrofiam as consciências. Cioran, a propósito, expressava um certo desprezo – talvez misturado a uma certa inveja – por aqueles que conseguiam dormir. Em seu entender, aqueles que dormem sentem o tempo de uma maneira muito diferente da do insone. Para os indivíduos que conseguem dormir, o tempo é muito mais simples, brando e mecânico: inicia-se quando acordam, prolonga-se no trabalho e nas tarefas do cotidiano e finda-se quando dormem, para recomeçar novamente com um outro despertar e com a repetição dos velhos rituais da rotina. A experiência reiterada deste ciclo provoca a ilusão de um novo dia, persuade a consciência de que o tempo renova-se, o que torna a vida de quem dorme uma fatalidade suportável. Já para o insone a percepção do tempo é radicalmente distinta. Ele não desfruta da ilusão da descontinuidade que o sono provoca. O insone sente intensamente que o tempo não tem interrupção, que é permanentemente contínuo. Portanto, ele não vê nenhuma diferença essencial entre os segundos e os minutos, entre os dias e as noites. Para o insone, o tempo nunca passa. E sem a convicção da renovação, sem a ilusão redentora do ciclo que os relógios fomentam, o tempo revela-se insípido, vazio, absurdo e sem finalidade, o que torna sua existência desesperadora. [...]
Eis que Cioran descobre o grande segredo a condição humana: o sono. É a faculdade de dormir que torna a vida humana suportável, pois é ela que nos impede a consciência de que o tempo é interminável e sem finalidade, e, por consequência, a consciência de que nossas vidas são efêmeras e gratuitas. No entender de Cioran, nós dormimos não para descansar, mas sim para esquecer o tempo, para fecharmos os olhos diante de nossa nulidade metafísica. [...] Cioran assevera que, se um dia toda a humanidade fosse impedida de dormir, a história se consumiria rapidamente por meio de carnificinas e de suicídios coletivos.
Em suma, a insônia foi a maior e mais determinante experiência filosófica de Cioran, na medida em que lhe revelou o nada de tudo o que existe, respira e resiste.

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