Cristian Derosa
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mutilação de Angelina Jolie - que, ao amputar
os próprios seios colocando próteses em seu lugar, acredita ter reduzido as
chances hereditárias do câncer - é o resultado de um tipo de mentalidade paranoica
comum em celebridades. Mas, por trás dessa aparente extravagância, está a
evolução de um longo processo que atinge grande parte da população por meio da
construção de um ideal de saúde desconexo da realidade.
Geralmente é
o lado emotivo que fala mais alto, quando alguém, por ter perdido um ente
querido por causa do câncer, louva Angelina Jolie como heroína da luta contra a
doença. As defesas acaloradas são fruto da mesma paranoia que motivou a atriz
em seu ato mutilante e aparentemente inspirador também para outras
celebridades.
Nas redes
sociais, veem-se muitos que a atacam e a elogiam pelo ato, mas ambos centram-se
na suposta inevitabilidade da doença hereditária. Mas este aspecto obstrui a
visão do que está por trás do ato paranoico, e que diz muito mais sobre como as
pessoas perderam a capacidade emocional de lidar com a possibilidade do
adoecimento. Nada disso é novidade para quem leu ‘Nemesis Médica’, de Ivan
Illich, que mostra o progressivo pânico gerado a partir da institucionalização
da medicina.
Ivan Illich
já dizia nos anos 1970 que a medicina institucionalizada era uma grande ameaça
à saúde. O termo iatrogenia - que designa o estado de doença ou complicação
causado pelo tratamento médico – tem sua origem na obra de Illich. Segundo ele,
a iatrogenia pode se manifestar de três formas, as quais surgem simultaneamente
na sociedade atual e decorrem uma da outra quase que inevitavelmente.
A primeira é
a iatrogenia clínica, causada pelo (des)cuidado médico, pela falta de segurança
no uso de equipamento cirúrgico ou determinada tecnologia, pelo uso ou abuso de
drogas médicas. É, em suma, o famoso erro médico ou de diagnóstico. Em segundo
lugar, há a iatrogenia social, decorrente da crescente dependência da população
em relação ao uso de drogas que amenizam o sofrimento. Trata-se do papel do
doente como ser passivo que aguarda as soluções mágicas do medicamento,
enquanto o médico salvador trará a tão sonhada cura. A dependência, neste
aspecto, é a da autoridade médica, que não deixa de ser uma extensão da
autoridade científica. Este fenômeno real e que afeta inevitavelmente quase
todo mundo, produz, por sua vez, um terceiro aspecto da iatrogenia: a
iatrogenia cultural.
A iatrogenia
cultural é a destruição potencial da capacidade de lidar com a enfermidade ou
com a morte: a perda gradual de tudo o que as civilizações criaram como
expedientes culturais eficazes para lidar com a vulnerabilidade da condição
humana diante do inevitável e das contingências da vida. Todas as práticas
culturais e tradicionais antigas foram substituídas pela figura do médico e da
técnica profissional. Neste aspecto há o sonho da possibilidade da técnica
estender indefinidamente a existência corporal humana, da eliminação definitiva
de todo e qualquer sofrimento físico.
No final
dessa linha está a ideologia do transumanismo, que propõe libertar o ser humano
de todas as suas limitações físicas e biológicas, chegando até a propor a
eliminação completa da dor e de todo tipo de sofrimento. Illich ressalta que
essa mentalidade teria começado na Revolução Francesa, a qual deu origem ao
mito de que os médicos podiam substituir os clérigos e que a sociedade poderia
voltar a um estado de “saúde original”, onde inexiste o sofrimento. Datam
daquele período as primeiras propostas de saúde pública.
Pior do que
a idealização da saúde, que em alguns casos pode estar associada a padrões de
beleza e moralidade, é o pânico do sofrimento, a neurose causada pela
inconformidade extrema com qualquer possibilidade de sofrer e mesmo de
enfrentar o risco do sofrimento, como mostra bem o caso de Angelina Jolie.
Hoje o
sofrimento é uma cruz por demais ingrata e inútil. Afinal, a referência cristã
- que o laicismo militante considera tão cruel - era a único resquício cultural
que conferia alguma dignidade ao sofrimento físico do ser humano – sofrimento
esse, em certa medida, inevitável. A dor de muitas pessoas se torna ainda pior
e mais insuportável quando, em nome de um ideal de saúde, se relaciona às
doenças todo tipo de impureza, tal como em tempos remotos. Não tardará que esta
sociedade apartada da caridade cristã jogue seus “leprosos” em guetos imundos,
para evitar o contágio dos considerados saudáveis ou, mais precisamente, dos
que tenham dinheiro para pagar pelo tão sonhado fim de todos os seus sofrimentos.