Degeneração
e Colapso
da
Humanidade
N
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umerosos mitos primitivos relatam a destruição da humanidade
por cataclismos de grandes proporções. O cortejo de desgraças inclui tremores
de terra, incêndios, inundações, desabamentos. Se já não fabulamos mitos
escatológicos, não quer isto dizer que estejamos ao abrigo de desastres
naturais gigantescos. Hoje é a própria ciência que se encarrega de advertir-nos
do fim catastrófico da humanidade. O superciclone que matou trinta mil pessoas
na Índia e as inundações sem precedentes que atingiram a Grã-Bretanha são
apenas indícios do que ainda está por vir. Caso a crise ambiental prossiga,
vaticinam os cientistas, as catástrofes se intensificarão e a vida humana será
varrida do planeta.
A
ciência, no entanto, não despertou ainda para outro fenômeno que põe em risco
nossa espécie e civilização. Atualmente, cardiopatias, cânceres, doenças
mentais, problemas reprodutivos, deficiências imunológicas vitimam a população
mundial independente de etnia e cultura, crença e costume, idade e
escolaridade. Esses e outros males se propagam num ritmo vertiginoso. Cada
indivíduo da moderna civilização será fatalmente atingido por uma (ou mesmo
mais de uma) dessas moléstias. Embora a ciência não perceba a gravidade da
situação, o fato é que a degeneração biológica, psicológica e espiritual da
humanidade constitui uma ameaça real à continuação da espécie.
Crise
ambiental e crise degenerativa. Em nosso horizonte pairam, negras e densas,
essas duas nuvens ameaçadoras. A tempestade só começou, pois tende a
avolumar-se terrivelmente nas próximas décadas.
Entretanto,
cravando “mais dentro a faca do raciocínio”, logo fica patente que a primeira
crise não é senão um sintoma, um resultado inevitável da segunda. À medida que adoecemos
física, psíquica e espiritualmente, cresce em nós a incapacidade de compreender
que a Natureza e o Homem constituem uma totalidade, que cada golpe desferido no
meio ambiente representa um golpe desferido em nossa própria face. Para dar fim
à crise ambiental é imperativo dar fim à crise degenerativa.
Mas
como deter a marcha da degeneração biológica, psicológica e espiritual da
humanidade? Medidas educativas, religiosas e médicas têm sido adotadas sem
resultado algum. A educação moderna não contribui para fortalecer o entendimento
humano, pois direciona todos os seus esforços para a formação técnica e
profissional. As religiões institucionalizadas estão longe de promover nosso
desenvolvimento espiritual. A medicina moderna, com sua visão mecanicista e
sintomática, mostra-se impotente na prevenção e cura das doenças, sejam elas
físicas ou psíquicas.
Se
esta tendência degenerativa não for pelo menos controlada, dentro de algumas
décadas quase toda a população mundial perderá órgãos, glândulas e outras
partes do corpo em intervenções cirúrgicas. Quase todos tentarão mitigar a
condição degenerativa recorrendo a transplantes, a funções monitoradas por máquinas,
a terapias hormonais. Mas ao lado desta artificialização biológica veremos
surgir ainda algo mais ameaçador: a artificialização psicológica. Território
por excelência da liberdade, o pensamento humano tornar-se-á um feudo
controlado pelos psicotrópicos. Na verdade, este tipo de controle já vem sendo
praticado em instituições correcionais e psiquiátricas há tempos; e hoje, tanto
escolas quanto empresas começam a se utilizar dele. Não nos espantemos se daqui
a alguns anos o uso de ansiolíticos, sedativos, antidepressivos e de toda a
sorte de droga sintética que atue sobre o psiquismo humano transpasse os muros
das instituições e avance decididamente sobre a intimidade de nossos lares.
Turvando-nos o discernimento e o raciocínio, serão os psicotrópicos o ópio
nosso de cada dia.
Tal
processo de artificialização pode, contudo, agravar-se, inaugurando na história
da humanidade a era da bionização e da psiconização. A bionização
caracterizar-se-á pela mecanização generalizada das estruturas e funções
biológicas. O conhecimento técnico será capaz de produzir dispositivos
artificiais que substituirão os órgãos degenerados e as funções que lhes são
correspondentes. Por outro lado, com o advento da psiconização, o apagamento da
memória e a instalação de uma memória artificial deixarão de fazer parte da
ficção científica. Biocomputadores poderão interagir diretamente com a mente
humana, dispositivos eletromagnéticos e outras engenhocas poderão regular e
reorientar o pensamento humano. Consequentemente, a concepção humana da vida
correrá o risco de ser substituída por uma visão artificial, na qual os
conceitos de saúde, amor, paz, justiça, vida, morte, Deus, enfim, se
apresentarão deturpados.
Importa
observar que, atualmente, a ciência já revela a disposição de entregar-se de
corpo e alma a pesquisas direcionadas à artificialização da vida. Vivemos, de
fato, uma contradição: de um lado, a crescente degeneração de nosso organismo;
de outro, os esforços multiplicados para criar estruturas mecânicas que nos
transformarão em seres totalmente artificiais. Não deveria a ciência buscar as
causas da degenerescência humana?
Embora
a crise degenerativa se manifeste também nas dimensões psíquica e espiritual,
há dois importantes motivos para buscar suas raízes no plano biológico. O
primeiro motivo é que a qualidade do nosso discernimento e comportamento
depende amplamente da qualidade de nossos órgãos e tecidos. A ideia de que
nossas dimensões mais “sutis” se deixam influenciar por nossas dimensões mais
“densas” é compartilhada por várias tradições médicas. Mesmo na modernidade e
no Ocidente há eruditos que reconhecem tal influência. Na primeira metade do
século passado, o sábio médico brasileiro Antônio da Silva Mello já ressaltava:
“O que nos falta é antes de tudo harmonia
interna, muito dessa felicidade que vem dos órgãos e dos tecidos e que é até
capaz de contribuir para dar direção às nossas visões filosóficas e religiosas.”
O segundo motivo é que nunca houve na história
da humanidade degradação como a que atinge hoje nossa origem biológica mais
imediata, qual seja, os alimentos. Nossos órgãos e tecidos, nosso sangue e
nossas células não são senão uma metamorfose dos alimentos diários que
ingerimos. Antes da Segunda Guerra Mundial, todos os alimentos eram cultivados
praticamente com métodos naturais. Não obstante tenha a produção de
agroquímicos se desenvolvido no período da Primeira Guerra Mundial, seu uso
epidêmico instalou-se somente após o ano de 1945, quando a produção fabril
voltada para guerra se viu forçada a redirecionar-se para outros fins. Como
adverte Vandana Shiva, “Estamos comendo as sobras da Segunda Guerra Mundial. As
substâncias químicas usadas no conflito estão sendo empregadas hoje como
pesticidas e herbicidas.” O uso generalizado dessas substâncias na agricultura
acabou por enfraquecer nossos alimentos, adulterá-los, corroer-lhes, enfim, o
vigor original.
Além
disso, é preciso assinalar que o progresso tecnológico muito contribuiu para
alterar os padrões alimentares da humanidade. O desenvolvimento dos meios de
transporte, por exemplo, permitiu que alimentos não locais, outrora
considerados de luxo, aportassem à mesa cotidiana do mais modesto dos cidadãos.
O avanço das técnicas de refrigeração, por sua vez, facultou o consumo
exagerado de carnes e laticínios.
Que
rareia na humanidade atual a saúde dos órgãos e tecidos deve explicar-se pela
desvitalização dos alimentos e pela mixórdia que se tornou a alimentação
hodierna.
“A
viagem de mil milhas começa com um passo.” Talvez seja este o mais importante
ensinamento de Lao Tsé. Se a humanidade deseja verdadeiramente salvar-se do
colapso total, o primeiro passo consiste em observar os princípios da agricultura
natural e voltar-se para os padrões alimentares das sociedades tradicionais.
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