A
Redenção pela Arte Culinária
Alan Watts
Só a Arte Culinária nos redime do ônus
de ter de viver à custa de outras vidas
O
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corpo biológico não é uma coisa fixa, mas um processo
em curso, tal como uma chama ou um redemoinho: só a forma é estável, pois a
substância é um fluxo de energia que entra por uma extremidade e sai por outra.
Somos oscilações temporariamente identificáveis em meio a uma corrente energética
que entra em nós sob a forma de luz, calor, ar, água, leite, pão, fruta,
cerveja, estrogonofe, caviar ou patê de foie
gras. E sai de nós sob a forma de gases e excrementos – mas também como
sêmen, bebês, confabulações, política, comércio, guerra, poesia ou música. Ou
filosofia.
Um
filósofo, título que suponho merecer, é uma espécie de intelectual simplório
que se assombra com aquilo que a gente mais sensata considera normal; é alguém
que não pode deixar de maravilhar-se com os fatos mais banais da vida
cotidiana. Como afirma Aristóteles, o espanto é o estopim da filosofia. A mim
me encanta saber que vivo sobre uma grande esfera rochosa que gira em torno de
uma imensa bola de fogo. Encanta-me ainda mais o fato de que sou, eu próprio, um labirinto, um
complicado arabesco de tubos, filamentos, células, fibras e membranas que
constituem espécies distintas de pulsações imersas na pulsação maior: aquela
incessante corrente de energia. No entanto, o que realmente me perturba é que
quase todas as substâncias que compõem o labirinto, com exceção da água, eram
outrora corpos cheios de vida – corpos de animais e plantas. E que, por falta
de escolha, delas tive de me apropriar mediante o assassinato. Não somos senão
o rearranjo de outras criaturas, pois a existência biológica só se perpetua graças
ao mútuo sacrifício e à mútua digestão das diversas espécies. Só existo como
membro deste grupo de seres que florescem devorando-se uns aos outros.
É
óbvio que ser devorado é algo muito doloroso, e não desejo tal sina para mim
mesmo. Fico horrorizado só de imaginar a cena. Se os donos de crematórios não
me pegarem primeiro, o fato de tornar-me um dia banquete de micróbios e vermes
compensará suficientemente as vacas, os cordeiros, as aves e os peixes de que me
fartei ao longo de minha vida? E eu me pergunto: não será esse gigantesco
esquema biológico de mutilação recíproca uma engenhoca insana e diabólica que
conduz aceleradamente a um beco sem saída? Tenho visto plantas atacadas pela
mosca verde; se num dia se mostram apinhadas de pequeninos corpos gordos e
suculentos, no próximo não são mais que pó cinza sobre hastes secas. A vida
parece um sistema que se devora até a morte, e no qual a vitória equivale à
derrota.
Pode
o homem seguir facilmente o exemplo da mosca verde. Quando se torna um especialista
em tecnologia, revela-se mais predatório que a piranha e o gafanhoto. Ele
devasta, destrói e contamina toda a superfície do planeta: minerais, florestas,
pássaros, peixes, insetos, água fresca – tudo é convertido em subúrbios e
esgotos, ferrugem e poluição. Seu domínio completo sobre os inimigos naturais,
desde o tigre até a bactéria, permitiu que proliferasse descontroladamente sobre
o globo; e temendo a própria ganância, desperdiça montanhas de dinheiro na
fabricação de armas cada vez mais mortíferas. Muitos animais pré-históricos
extinguiram-se em decorrência do excessivo desenvolvimento de suas defesas
naturais. Desapareceram, por exemplo, o tigre de dentes de sabre e o titanotério;
o primeiro por causa da dificuldade em manejar suas imensas presas, e o segundo
por causa do peso insuportável de seus chifres.
Alguém
pode aceitar a ideia da morte da espécie, tal como aceita a da morte do
indivíduo. A energia do universo adotará novos padrões e formas, e o universo dançará
ritmos até então desconhecidos. O espetáculo, é claro, continuará; mas por que deve
ele encerrar tão intensa agonia? Nervos e carnes sensíveis se contorcendo ao
bater implacável de dentes afiados – será essa a condição indispensável à
continuidade da vida? Se for, então o único problema filosoficamente sério,
como afirmava Camus, é se devemos ou não cometer suicídio.
Consequentemente,
o filósofo se pergunta: afora o suicídio, existe outra maneira de escapar deste
círculo vicioso de matança recíproca, o qual não deixa de ser uma espécie de
suicídio cósmico? Existe algum modo de evitar, mitigar ou abrandar esse sistema
de assassinato e agonia implícito até mesmo na existência do mais
espiritualizado dos seres humanos?
O
vegetarianismo não constitui uma solução. Há tempos o botânico indiano Jagadis
Bose conseguiu medir as reações de dor das plantas ao serem arrancadas ou
cortadas. Pode-se alegar que as plantas não sabem
que sofrem; mas o mais razoável é reconhecer que elas não são capazes de
expressar de maneira convincente, pelo menos para nós, a dor que padecem.
Quando referi a pesquisa de Bose ao budista estritamente vegetariano Reginald
H. Blyth, autor do clássico Zen in
English Literature, ele respondeu: “Sim, eu sei. Mas os vegetais, quando os
matamos, gritam muito baixo.” Em outras palavras, Blyth se mostrou
condescendente com os próprios
sentimentos. Monges hinduístas e budistas incorporam ao seu dia a dia a atitude
de ahimsa ou não violência, ao
extremo de não levantarem a vista do solo enquanto caminham – não, como
poderíamos supor, para evitar a tentação provocada por uma esplendorosa
passante; mas para evitar a morte por esmagamento de besouros, caracóis ou
minhocas que por ventura encontrarem durante o percurso. No entanto, tal
atitude não deixa de ser um subterfúgio, um gesto ritual de reverência pela
vida que não altera em nada o fato de que vivemos graças ao morticínio.
Recorrendo
à minha própria consciência para lançar alguma luz sobre tão espinhosa questão,
encontrei três respostas.
A
primeira consiste em admitir que a decisão de viver supõe a decisão de matar. E
se estou realmente decidido a matar, é preciso fazê-lo de maneira eficiente. Que
se considere a agonia de ser decapitado por um verdugo desastrado. A morte deve
ser tão rápida quanto possível, e a mão que segura o rifle ou maneja o facão
deve manter-se firme.
A
segunda é levar em conta que toda forma de vida tornada alimento deve ser
tratada conforme o princípio “Amo tanto esta manifestação da vida que vou
comê-la”, o que significaria também “Como tanto esta manifestação da vida que vou
amá-la.” Tal princípio tem sido negligenciado impiedosamente pela agroindústria
e pela indústria pesqueira atuais. Para citar apenas dois exemplos, as modernas
técnicas de pesca à baleia estão ameaçando a espécie de extinção, e a criação
industrial de aves está saturando o mercado com pseudofrangos e pseudo-ovos. Criados
em jaulas metálicas e alimentados com ração química, os desafortunados animais nunca
ciscam a terra nem tomam sol; daí apresentarem a carne insípida. Tudo o que não
gera prazer no prato não foi bem tratado nem na cozinha nem na granja.
A
terceira foi genialmente apresentada por Lin Yutang da seguinte forma: “A
galinha sacrificada e não devidamente preparada ao fogão morreu em vão.” O
mínimo que eu posso fazer por uma criatura que morreu em meu benefício, é
honrá-la – não com um ritual vazio de significado, mas cozinhando-a com perfeição
e saboreando-a plenamente.
O amor
às plantas e aos animais que tornam possível nossa vida deve manifestar-se
sobretudo na cozinha.