Sagen Ishizuka:
A Potência Transformadora do Alimento
(Parte Segunda)
Ronald E. Kotzsch
Foi, portanto, uma
cultura tradicional e estável que o Comodoro Perry deparou ao invadir com sua
esquadra a baía de Edo em julho de 1853. Num gesto tipicamente “sutil” de
diplomacia militar, Perry exigiu do Japão a abertura dos portos, prometendo
retornar com mais navios caso fosse necessário. O Japão, percebendo que suas
espadas e arcos nada podiam contra os canhões americanos, cedeu à exigência. A
partir daí, começa a história moderna da nação japonesa.
Orgulhosos e patriotas,
não estavam os japoneses absolutamente dispostos a ver seu país transformar-se
numa colônia. Restituído o poder político à Família Imperial e instaurado um
forte governo central, eles iniciaram um consciente, enérgico e bem sucedido
projeto de modernização. O Japão logo compreendeu que, para permanecer
independente, necessário era apropriar-se do conhecimento ocidental. Missões
oficiais foram enviadas à Europa e América com o propósito de observar, estudar
e assimilar elementos-chave da cultura ocidental. A cientistas, engenheiros,
militares, advogados e outros especialistas estrangeiros foram oferecidos altos
salários para que viessem ao Japão viver e ensinar. Desse modo, o país
rapidamente importou e adotou várias criações do ocidente: a ciência e a
tecnologia; as técnicas militares; padrões políticos e econômicos. Linhas
telegráficas, ferrovias, fábricas despontavam na até então imaculada paisagem
japonesa.
O país manteve dois
ideais durante esse período. O primeiro resumia-se na expressão fukokukyōhei, “uma nação rica e
militarmente forte.” O segundo sintetizava-se nas palavras wakonyōsai, “a alma do Japão e a tecnologia do Ocidente.” Os
japoneses recusavam a converter-se numa pálida cópia do Ocidente. Desejavam
preservar seu caráter nacional, aquela enigmática e poderosa mistura de
cortesia, disciplina e espiritualidade que era o Yamato-damashii, “o espírito do Japão”. Queriam, ansiavam mesmo,
assenhorar-se do conhecimento científico e técnico do Ocidente, mas não do
“espírito do Ocidente”.
Mas, na realidade,
mostrou-se difícil manter essa distinção. Os japoneses logo importaram as
novidades científicas, tecnológicas, industriais, políticas, jurídicas.
Contudo, também adotaram, com igual fervor, os padrões ocidentais de arte,
música, literatura, dança, vestuário, religião, filosofia e moralidade. A elite
de Tóquio passou a usar coletes, chapéus, toucas e vestidos longos, e
divertia-se em grandes bailes no estilo ocidental. Ela escutava Bach e
Beethoven, tocava violino e piano, estuda Kant e Jemery Benthan, e flertava com o
Cristianismo. Em quase todas as áreas da vida, o tradicional e oriental foi
sendo descartado e substituído pelo moderno e ocidental. Nas recém-instaladas
“escolas públicas”, que suplantaram os velhos terakoya, ou “templos escolares”, os pincéis deram lugar às
canetas-tinteiro e a maneira japonesa de registrar a música à notação musical
ocidental. Coleções de estátuas
budistas, gravuras vívidas e antigos pergaminhos foram vendidos por uma
ninharia a colecionadores ocidentais. Templos centenários, frutos do mais puro
gênio arquitetônico, foram derrubados e usados para alimentar fogueiras.
Essa rejeição ao antigo e
familiar e a adoção cega aos costumes estrangeiros reproduziram-se também no
terreno da medicina e nutrição. À época, a medicina ocidental desenvolvia-se
rapidamente, e novos e extraordinários meios de tratar as doenças surgiram. No
final do século XVIII, William Jenner criou uma vacina contra a varíola. Por
volta de 1850, o francês Louis Pasteur tornou pública a teoria segundo a qual a
causa primeira das doenças humanas é a invasão do corpo por perigosas formas
microscópicas de vida. Uma vez aceito este fundamento da medicina alopática,
procurou-se curar as doenças destruindo os patógenos. A descoberta do
clorofórmio, no mesmo período, tornou possível o aperfeiçoamento de técnicas
cirúrgicas.
Em 1871, os primeiros de
uma série de médicos alemães chegaram ao Japão com a missão de praticar e
ensinar a medicina ocidental. Em 1883, o governo japonês proibiu a prática da
medicina tradicional e erigiu ao posto de medicina oficial do país a alopatia.
A Faculdade de Medicina – cujos professores, em sua maioria, eram alemães –
transformou-se em secção da jovem Universidade Imperial de Tóquio.
Repentinamente, os antigos tratamentos – acupuntura, moxa, massagem e medicina
herbária – foram tachados de obsoletos, e aqueles que os praticavam declarados
fora da lei. Esses curadores, no entanto, não interromperam abruptamente suas
atividades. A maioria deles simplesmente passou a exercer sua arte em segredo,
esperando o momento propício para voltar a trabalhar às claras. Mas a partir
daí a medicina ocidental foi oficialmente sancionada, e as velhas terapias (e a
teoria energética que as embasava), consideradas primitivas e não científicas.
O cenário era similar no
campo da nutrição. Na Europa, a moderna ciência da nutrição começa a
desenvolver-se em meados do século XIX. Graças principalmente à obra pioneira
do bioquímico germânico Justus von Liebig (1803-1873) e seus discípulos, os
vários nutrientes disponíveis nos alimentos foram isolados e identificados.
Experiências com animais foram realizadas com o propósito de descobrir quais
nutrientes – e em que quantidade – eram necessários para manter a vida e seu
desenvolvimento. Procedeu-se à análise dos nutrientes de vários alimentos. Essa
pesquisa pioneira estabeleceu a base da ciência da nutrição moderna e suas
teorias. A proteína foi considerada o nutriente mais importante, essencial ao
crescimento e à reparação dos tecidos. Por conseguinte, a carne, os ovos, os
queijos e outros produtos animais eram altamente recomendados. Encararam-se os
carboidratos como mera fonte de energia, e aos alimentos ricos nesse composto
orgânico, tais como batatas e açúcar refinado, atribuíram-se vantagens
nutricionais.
Também no território da nutrição,
o governo japonês tomou a iniciativa de promover as ideias e práticas do
Ocidente. Objetivando aumentar a vitalidade e a força física do povo, as
autoridades incentivaram a adição de carne e laticínios à alimentação
tradicional. O governo também sugeriu a substituição do arroz pelo pão branco
usado no Ocidente. Naquela época, a estatura média do homem japonês
correspondia a 1,62 m, enquanto a da mulher japonesa a 1,52 m. Acreditava-se que
o segredo da força e do tamanho dos ocidentais, e mesmo da superioridade
tecnológica, residia no consumo da carne, trigo e leite.
Os alimentos ocidentais
foram-se introduzindo lentamente na dieta japonesa. Ao menos no dejejum das
sofisticadas famílias urbanas, torradas com manteiga, salsicha e leite
competiam com sopa de missô, arroz e chá. A despeito de seu extenso litoral, o
país viu aumentar consideravelmente a demanda por carne, sobretudo bovina e
suína, e vários restaurantes especializados em carne de vaca abriram suas
portas nas grandes cidades. O açúcar refinado tornou-se um importante
ingrediente da culinária japonesa. Provavelmente graças à pressão da indústria
açucareira, o dito “açúcar refinado na cozinha é sinal de cultura e requinte”
disseminou-se entre a população. Tanto na preparação do arroz e vegetais, como
na de doces e sobremesas, o açúcar branco assumiu um papel significativo na
culinária japonesa. Batatas foram introduzidas, e seu cultivo, especialmente
depois de 1888, encorajado.
A dieta japonesa, é
claro, não mudou completamente da noite para o dia. Mesmo hoje, passado mais de
um século, arroz, missô, algas marinhas, conservas de vegetais, etc. continuam
presentes no dia a dia. O fenômeno explica-se, por um lado, pela dificuldade de
eliminar costumes antiquíssimos; e, por outro, pela impossibilidade de o Japão
produzir muita carne e alimentos de origem animal. O país é pequeno, mas
populoso; e quatro quintos de seu território compõem-se de montanhas
escarpadas. As reduzidas terras cultiváveis destinam-se à plantação de arroz,
feijão e vegetais. Para vacas e ovelhas pastarem nas terras íngremes impróprias
para agricultura, necessário era que viessem ao mundo com outra configuração
anatômica. Na melhor das hipóteses, uma família de agricultores poderia criar
uma vaca, alguns porcos e algumas galinhas. Assim, dado o seu alto custo, a
carne era, e continua sendo, um produto quase proibitivo. Houve, todavia,
mudanças no estilo japonês de se alimentar; e ao longo do Período Menji essas
mudanças continuaram.