Bon
Voyage!
Toda vez que me via mergulhado numa
crise, quando a única coisa sensata a fazer era abandonar o emprego, o
casamento, a cidade em que vivia, ou mesmo este miserável planeta que habitamos
(miserável porque assim o tornamos, dada a nossa incrível capacidade de tudo
corromper) – todas as vezes, enfim, que a vida me proporcionava algo mais excitante
que a letargia do cotidiano, lá ia eu para os braços da prosa revigorante de
Henry Miller. Ia, é claro, em busca de um antídoto contra a falta de coragem
para fazer “a ruptura necessária. ”
E o resultado era sempre o mesmo: os
livros de Miller, como uma tisana milagrosa, destilavam em minhas veias o dom
de aceitar os desafios, de encará-los como um caminho para a salvação.
Outro aspecto da obra de Miller que
não deve ser menosprezado é sua atmosfera oriental. Aliás, a própria pessoa de
Miller lembrava a de um velho sábio chinês. Não é raro, por exemplo, em meio à
narrativa autobiográfica, defrontarmo-nos com um fluxo de pensamentos que muito
devem à tradição asiática. George Ohsawa insistiu em que a vida humana não é senão
uma viagem, uma viagem que, para os mais afortunados, dura em torno de oitenta
anos. Ohsawa gostava de dizer que viemos à Terra para participar de um grande piquenique.
Não é esse o espírito que anima o texto de Miller reproduzido a seguir?
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ubitamente,
senti-me tão tremendamente feliz que tive ímpetos de levantar-me e gritar ou
cantar. Mas só podia pensar: “Bon Voyage!”
Que frase aquela! A gente passa a vida toda vagabundeando por aí, a murmurar
uma frase tomada por empréstimo aos franceses, mas será que alguma vez,
realmente, chegamos a fazer uma boa
viagem? E será que compreendemos que, mesmo quando caminhamos até o bistrô
ou
até o armazém da esquina, o que estamos fazendo é partir numa viagem, da qual
talvez não retornemos jamais? Se acaso sentíssemos intensamente que cada vez
que zarpamos de casa embarcamos numa viagem, será que nossas vidas seriam um
pouco diferentes do que são agora? Enquanto fazemos nossa viagem à esquina, a
Dieppe, a Newhaven, ou a outro lugar qualquer, a Terra também está viajando,
para ninguém sabe onde, nem mesmo os astrônomos. Mas todos nós, quer nos
movamos daqui à esquina, ou daqui à China, viajamos junto com nossa mãe, a
Terra, que viaja junto com o Sol, o qual, por sua vez, arrasta consigo todos os
planetas... Marte, Mercúrio, Vênus, Netuno, Júpiter, Saturno, Urano. O
firmamento inteiro viaja, e, se você prestar atenção, poderá ouvir o ecoar de
um “Bon Voyage!”, “Bon Voyage!” Se você se mantiver bem
quieto, sem fazer perguntas tolas, compreenderá que viajar nada mais é que uma
ideia; que tudo na vida se resume nisso, numa viagem dentro da outra. Que a
morte não é a última delas, mas o princípio de uma outra, cujo porquê e destino
desconhecemos. Mas, mesmo assim, “Bon Voyage!”
Tive vontade de levantar-me e cantar tudo isso em dó menor. Via o Universo como
uma rede de caminhos, alguns profundos e invisíveis como as órbitas
planetárias; e, nesse vasto e nebuloso ziguezaguear pelas passagens
fantasmagóricas, existentes entre um domínio e outro, podia ver todos os seres,
animados e inanimados, acenando uns para os outros: as baratas para as baratas,
as estrelas para as estrelas, o homem para o homem, Deus para Deus. Todos a
bordo, para a grande viagem a lugar nenhum. Mas, de qualquer maneira, “Bon Voyage!” Da osmose ao cataclismo,
tudo é perpétuo movimento, vasto e silencioso. Permanecer imóvel, dentro deste grande e alucinado
movimento, mover-se com a Terra, por mais que ela cambaleie, unir-se às
baratas, às estrelas, aos homens e aos deuses, isso é viajar!
Sim, por Cristo, agora posso afirmar com a
consciência tranquila. Sim, eu também
escrevo livros de medicina, maravilhosos livros de medicina, que curam todos os
males no tempo e no espaço. De fato, agora mesmo estou escrevendo o maior de
todos os purgativos da consciência humana: o
sentimento de viagem!